quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O BÚZIO de ISTAMBUL

O BÚZIO de ISTAMBUL, de João Rasteiro – Crítica de Luís Serrano (*)

A última obra de João Rasteiro aparece-nos sob o signo do Oriente através da cidade de Istambul (ver título) que salta de um verso de José Tolentino de Mendonça (ouvi a estranhos no Bazar de Istambul) e de um outro de Hart Crane (Ó rosa de Istambul – os sonhos tecem a rosa!).
Há ao longo do livro referências bíblicas, mais explícitas ou menos explícitas (Bagdad, Nazaré, Babilónia, torre de Babel, Istambul, mirra, incenso) e também referências a Herberto Helder, ele próprio um poeta marcado pela leitura da Bíblia. É óbvio que a linguagem barroca de João Rasteiro tem a ver com muitas leituras feitas, mas eu destacaria a de Herberto Hélder, cultivando o verso longo e os vocábulos pouco comuns (rares mots) que os simbolistas viriam a cultivarem.
A obra está dividida em três partes: O anjo abstracto, Amieiros que sangram e Tríptico da criação.
Falar da aldeia do Ameal onde nasceu é, para Rasteiro, falar do nascimento e da morte que são, naturalmente, os dois marcos que balizam a vida de qualquer homem.
O Ameal está presente em toda a obra, quer explicitamente, quer através dos microcosmos Sardoal e Rigueira, eles próprios referências topográficas integradas no Ameal.
Diria que é a segunda parte a mais importante, quer ao nível da mensagem que se pretende transmitir (os poetas pretendem sempre transmitir uma mensagem porque querem ser lidos, mesmo quando dizem o contrário), quer a nível dos processos utilizados. São praticamente todos ou quase todos “poemas em prosa”.
É uma extensa reflexão sobre a morte (e sobre a morte do pai, em particular, facto ocorrido quando o autor tinha apenas 31 anos de idade) e sobre o lugar que o viu nascer e onde a infância deixou marcas fundas na memória.
Logo nesta parte (Os amieiros que sangram) o poema da p. 47 inicia-se por um regresso à infância: Aprendi a regressar e todo o poema é escrito no presente do indicativo para nas últimas 3 linhas passar a pretérito imperfeito. São 3 linhas de grande significado: E a terra era viva, translúcida, e tinha um cheiro morno que entontecia. Porque era nela que eu frutificava, pungente.
As referências à morte do pai são comoventes mas sóbrias. Na p. 48 pode ler-se: Estamos em 1996, é Outubro, […] e eu à procura de meu pai […] e na p. 49 é ainda um poema sobre o pai, agora feito memória: O Inverno adquirira um rosto. O dele (do pai): E também ele encontrara um rosto. O seu próprio.
A obsessão da morte encontra-se em muitos poemas. Leia-se na p. 51: Um dia, também eu encontrarei a morte no meio dos amieiros. É curioso verificar que sempre a morte está ligada a um topos que neste caso é a povoação de nome Ameal (Amial com i como se escrevia ao tempo da infância do autor) nas proximidades de Coimbra. Uma síntese destas ligações é bem visível no poema da p. 52: Olho em volta: eu e o meu pai e com todas as memórias que se somam ao meu corpo, e que tu, e contigo todas as memórias, tu aldeia, em que descobri a forma dos fetos, o êxtase do tempo, até conseguir fazer soltar a primeira respiração, a respiração do lugar inicial, a respiração purificada dos animais sob os amieiros.
No poema da p. 53, o autor volta ao tema: […] quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, […] E nem sequer me despedi, pai.
E é entre a morte e os amieiros, símbolo de uma ligação à terra, que a obra se vai construindo; nela não cabe apenas a razão mas também a emoção, a lágrima discreta que o tempo ainda não apagou. Diz o poeta na p. 55: Os amieiros chegam como um nome mágico à boca do rio, sempre um jardim de amieiros contra a paixão da água.
Há, ao longo do livro, imagens muito belas que mostram o bom gosto do poeta, "a qualidade da fábrica". Por exemplo, da p. 57 retiro as últimas 5 linhas: O céu é um pássaro descomunal envolto em chamas sobre as vozes dos mortos, sobre os livros onde se aprisiona a formosura das palavras, como se fosse possível guardar a transparência do júbilo.
E a morte é assim, na visão do poeta, não desactivada mas, de algum modo, contrariada ou superada pela força das palavras. Eis aqui uma razão muito forte para que João Rasteiro continue a escrever os seus poemas que passam a ser nossos também.
A morte circula por aqui, como reiteradamente se disse, entre um Anjo abstracto e um Tríptico da criação onde se integra o poema O território dos anjos. Os anjos são agora de carne e osso e estão contaminados por tudo aquilo que transforma os homens: o amor, o ódio, o crime.
Deixa-se aqui apenas uma sugestão para futura obra: uma redução drástica na frequência de comparações explícitas e de possessivos. Uma obra com a qualidade desta merece uma atenção mais detalhada quanto ao emprego destas bengalas.
A obra vem prefaciada (?) por um poema de Casimiro de Brito intitulado: Quem amou ainda ama.
É uma edição de Palimage, 2008, ostentando a capa uma imagem de Rogério Oliveira.
Aos que se interessam pelo conhecimento dos novos caminhos da poesia portuguesa, recomenda-se a sua leitura.
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(*) Poeta e ensaísta.

domingo, 15 de junho de 2008

Cântico das Pragas

Paraíso e Inferno - H. Bosch
O cântico das pragas
............À entrada de um túnel está um homem
............com uma bandeira. É para a cobra que
............acena, respondendo a um sinal.
...................
Jaime Rocha

.
É das palavras
que irradia a morte soberana
os lugares sitiados, a blasfémia do silêncio.
Todos morrem nas palavras disponíveis
apenas os corvos tristes
a quem soldaram o bico com prata
suspendem a morte
no branco das túnicas da água visível.
É nesse espaço
onde antes iam os homens sedentos
alimentar a fractura das vísceras
comendo de rastos com as cobras
que a chuva cai geométrica
estilhaçando o alastro das gargantas
que guardam as sílabas com aroma de tílias.
.
O homem está morto dentro do poema
como a linguagem das antigas escrituras
e é o seu corpo que brilha através do branco.
As cobras emergem do chão
abrigam-se nas túnicas álgidas
e aproximam-se do corpo do homem exposto
iluminadas em sua própria loucura.
Engolem os restos da carne corrompida - mas,
inexplicavelmente poupam-lhe os olhos -, depois,
saboreiam o que lhes vai consumir
para sempre a língua, o coração das entranhas.
.
O segredo absoluto e divino do extermínio do verbo.
João Rasteiro
The chant of plagues
.............At the mouth of a tunnel is a man
.............with a banner. He waves at the snake,
.............responding to a sign.
...................
Jaime Rocha
.
It is from flamed words
that sovereign death irradiates
the besieged places blasphemy of silence.
All die in the available words
only the sad crows
whose beak was welded in the silver glit
cunningly hold death
in the whiteness of visible water tunics.
It is in that ancestral space
where thirsty men went before
to feed the fracture of the guts
sipping belly-down with the snakes
that rain pours down geometrical
splintering the ballast of the throat
that keeps syllables with a taste of linden.
.
The man is dead inside the poem
like the language of ancient scriptures
and his body is shining through the whiteness.
Snakes burst out from the ground
meek take sanctuary in the algid tunics
come close to the body of the man exposed
lit by their own madness.
They swallow the remains of the corrupted flesh
inexplicably they do spare his eyes - then
then they taste that which will consume
Their tongues forever, the heart of entrails.
.
The secret absolute and divine of the extermination of the word.
João Rasteiro
Le cantique des fléaux
............À l’entrée d’un tunnel il y a un homme
............avec un drapeau. Il fait signe à la couleuvre
............Répondant, à un signal.
.................
Jaime Rocha
.
C’est par les mots enflammés
que rayonne la mort souveraine
les lieux assiégés, blasphème du silence.
Tout meurt dans les mots disponibles
seuls les corbeaux tristes
auxquels on solda le bec en fulguration d’argent
suspendent la mort avec astuce
dans le blanc des tuniques sous l’eau visible.
C’est dans cet espace ancestral
où autrefois allaient les hommes assoiffés
nourrir la fracture des viscères
suçant au ras du sol comme les couleuvres
que la pluie s’abat géométrique
brisant la portée de la gorge
qui garde les syllabes à l’arôme des tilleuls.
.
L’homme est mort au-dedans du poème
comme le langage des anciennes écritures
et c’est son corps qui brille au travers du blanc.
Les couleuvres sortent de la terre
elles s’abritent dociles dans les tuniques algides
s’approchent du corps de l’homme exposé
illuminées par leur propre folie.
Elles avalent les restes de la chair corrompue
et inexplicablement leur épargnent les yeux
puis elles savourent ce qui va leur consumer
à tout jamais la langue le cœur des entrailles.
.
Le secret absolu et divin de l’extermination du verbe.
João Rasteiro
.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

CrÍticas e comentários ao "BÚZIO de ISTAMBUL"

Criticas e comentários ao BÚZIO de ISTAMBUL:


O BÚZIO de ISTAMBUL é um livro muito bom, não precisa de posfácio de ninguém.

Casimiro de Brito – Poeta e presidente do P.E.N. Clube Português
*
Este seu BÚZIO de ISTAMBUL prossegue a aventura iniciada em livro anterior. Vejo porém, que investe agora longamente no poema em prosa, que lhe permite uma respiração mais ampla, mais afoita ou mais desafogada. Em alguns poemas, entretanto, é ainda o verso regular, escondido, que estrutura ou sustenta o discurso e onde a linguagem encontra ritmos e poemas de expressãop que a cada passo remetem para o universo camoniano, como é o caso da referência aos Rios da Babilónia, ou ao início do poema da pg. 22.
Por este búzio passam os ecos duma infância vivida entre amieiros, montes, o voo dos pássaros, o ventre nu. Assomam memórias e vislumbres, o justo arrepio das vozes/ o transparente da infância. Por isso as palavras, sopradas pelo bafo do poeta, correm para o poema, lá onde o fogo arde com ofício puro.

Albano Martins – Poeta, ensaísta e tradutor português.
*
Meu caro João Rasteiro, é só para lhe dizer o quanto me interessou o seu belo livro - O Búzio de ISTAMBUL. Você aflora áreas do território poético que só raramente se vêem tocadas, o que confere aos seus textos uma força de ânimo, sustentada pela originalidade. Seduziram-me sobretudo as peças em prosa, tão tensas e tão intensas, e tão testemunhantes de um iridescente núcleo emocional.

Mário Cláudio – Ficcionista e poeta português
*
“O búzio de Istambul”, de João Rasteiro é um livro que se deixa escutar. Esta talvez seja a melhor forma para se explicar o que este livro guarda e que o título bem anuncia. Na senda da metáfora mais densa, enunciada por Fiama Hasse Pais Brandão, o escritor conimbricense João Rasteiro lega a sua voz à voz de um lugar, um espaço onde os amieiros são predominantes. Por eles perpassa a memória dos rios, dos gestos, dos afectos. É o lugar onde as palavras se erguem em busca de uma outra dimensão, dimensão essa que o búzio se dispõe a revelar porque é essa a ressonância que guarda.Depois, o diálogo com outros poetas através de um jogo epigráfico deveras interessante, alguns em tom quase epistolográfico. Uma nota: os registos em prosa poética, cuja organização em ciclo permite a construção de histórias onde as palavras são as protagonistas.

Xavier Zarco – Poeta português
*
Caro João, seu “Búzio de Istambul” é um excelente livro: gosto muito da simplicidade e simultaneamente da sua densidade. Um livro generoso e humano, com uma dicção quase prosaica e ao mesmo tempo um ritmo surpreendente. A destacar os poemas dedicados a seu pai, ao Jorge de Sena e ao Al Berto, estes dois últimos são os meus preferidos, além do “Encontro com Herberto Helder”. Percebi também perfeitamente as suas leituras e me identifiquei plenamente com muitas delas! Gosto muito do “Poema dos jardins ausentes”: (…) E é como se as rosas nascessem dos dedos/ como uma raiz imitando os frutos meu amor. Muito belo. Obrigado pelo livro. Gostei muito.

Susana Vargas – Poeta, autora de literatura infantil e ensaísta brasileira

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Inês de Castro na literatura portuguesa


Análise crítica do conto "D. Pedro I e Inês de Castro", do livro "Triunfo do amor português", de Mário Cláudio:


Em entrevista ao jornal Diário de Notícias, Mário Cláudio afirma que o que vamos encontrar, neste “Triunfo do Amor Português", é “Uma dimensão da urgência e da permanência do amor”, sendo que o que existe de comum nestas histórias de amor é “A transgressão”. É precisamente este factor de transgressão (e não propriamente um factor de culpa, como alguns poderão pensar), que encontramos no conto “Dom Pedro I e Inês de Castro”. Nesta transgressão Mário Cláudio coloca em causa uma racionalidade, um sentido, assente na modernidade judaico-cristã. É esta, em última instância, que é colocada em causa. O ”sentido” para o autor, é afinal o sentido mais verdadeiro: o sentido da irracionalidade dos pássaros(pág. 55), do amor, da vida (como apenas a outra face da morte), o sentido do corpo (que é apenas a outra face do espírito). E este sentido, que é um “sem sentido”, faz-se som dominante. Até porque o sentido e/ou racionalidade medieval não coloca as visões de vida e morte como antagónicas, tal como não o são as do real e da magia. Desta perspectiva, neste conto não existe uma questão de “ou”, "ou". Quase sempre, é uma questão de “e”. O amor "e" a natureza, "e" a vida, "e" a morte; a razão "e" a des-razão". O próprio sentido dominante é trucidado pelas gargalhadas do rei, através de um excesso cómico, lembrando o excesso barroco, também da pós-modernidade. Não concordo, nem o conto a exprime, com a ideia de que “Não há amor sem culpa”. Transgressão não significa culpa, e é desta transgressão que essencialmente trata este conto. Na imagem de D. Afonso IV, a depor uma cruz sobre o tampo de carvalho, o rei pretende livrar-se precisamente da sua culpa de amor, fosse o amor ao reino, fosse o amor a Inês de Castro(pág. 54), uma vez que a cruz traz, em si mesma, esse sentido de culpa. Este conto assenta numa estrutura do “acordamento”, que passa à viagem metafórica(meta-phoreia-transladar), a viagem em que se acompanha a outra, a literal: a do cadáver, de Coimbra a Alcobaça. As analepses existentes no conto, constituem uma viagem paralela: pela história do amor e pelo questionar/pelo reflectir sobre a sua natureza. As duas viagens, que são uma, terminam na “revelação” do sonho.Refira-se, como afirma Stephen Wilson, no posfácio à segunda edição do “Camões” de Ezra Pound, a importância dada por Pound à viagem, exumação e coroação póstuma(contrariamente a Camões), num “processo de actualização”, que, Pound considerava “como a tarefa principal do artista”. E, é essa “actualização” que a prosa de Mário Cláudio, permanentemente nos oferece. O texto decorre através de uma linguagem neo-formalista, que tenta recuperar um português primitivo, como primitivo é o lugar do amor e do sentido anterior a todos os sentidos. O amor como criação. Encontramos um narrador(D. Fernando), homodiegético(na terminologia de Genette) e não omnisciente. É neste narrador, que vai assentar toda a estrutura do conto, seja ao nível do “estranhamento” ou do “acordamento”. É através do narrador que se vai formando a ideia de uma Inês, uma personagem à volta de quem giram várias e complexas relações. Repare-se na relação entre Inês e Dona Constança. Será amizade, amor, ciúme ou outra relação ainda mais intrigante?(até porque a dificuldade do amor assenta precisamente na sua não compreensão, na sua não - humanidade – ele é para além de nós). Daí se poder questionar(pág. 46) de quem teria Dona Constança ciúmes. Seria de Pedro, ou de Inês? O autor e/ou narrador deixa-nos numa encruzilhada, simbolizada no jogo de xadrez a que Dona Constança se entrega. O xadrez, como possível metáfora do poder( político, económico ou moral), mas sobretudo do poder do amor. Na página 49, existe mesmo uma alusão, uma suspeita de quase "incesto", na relação entre D. Afonso e Inês de Castro. O próprio narrador(D. Fernando) refere(pág. 47): “plantou-se meu pai como se guardasse a que fora sua, e creio que sua apenas”. Porquê esta re-afirmação do narrador? Será que foi mesmo de mais alguém? De D. Afonso IV, Dona Constança, de um outro desconhecido? Aliás, importa referir que se o carácter de D. Pedro nos é apresentado como o de um homem desequilibrado, sob uma forma animalesca, Inês, como refere o narrador, não é nenhuma santa(pág. 47): ela é homenageada, não por ser santa, mas por ser desgraçada como todos eles. É uma anti-heroína. Perpassa, como fundamental neste conto, a celebração da vida através da celebração da morte(daí a reposição da “dança da morte”, uma “dança macabra”(na pág. 48), onde se mostrava e evidenciava , “o primado da vida”). Aqui, o amor está ligado à morte e à vida, à celebração da própria natureza(e não à celebração das normas éticas e morais de uma sociedade). Repare-se nas mágoas de D. Pedro, “curadas” pela madrugada, nos casebres das moças que dormiam. Na presença da morte, a sexualidade, a vida. A morte surge como festa, celebrando a vida: como na natureza do próprio amor. Atente-se no pormenor que é a sobreposição do orgasmo de D. Pedro ao último suspiro de Dona Constança. Não existe neste conto - nem na natureza do amor - separação entre vida e morte. Pode-se dizer, tendo em conta o que diz o narrador(pág. 52): “como se a paixão maldita que não se extingue permanecesse”, uma vez que a impossibilidade de deixar de amar é igual à impossibilidade do triunfo da morte absoluta”. Daí que D. Pedro vá vivendo o seu amor - entregando-se à morte - da própria amada e dela fazendo rainha. Regresso por fim ao narrador, D. Fernando, que é na verdade a personagem essencial deste conto. Nele vamos encontrar uma permanente des-identidade. Como é sugerido(pág. 56), ele é simultaneamente Inês, mulher, homem, alguém que está preso num espartilho(que diariamente lhe colocavam, com as suas vestes), que é o espartilho da sociedade. O espartilho do poder, político, ético, cultural e social com que não se identifica. D. Fernando não consegue livrar-se da imagem da mãe; logo, não poderá amar a mulher, Dona Leonor, que, tal como todas as mulheres, lhe lembra a mãe. Precisa urgentemente que o rei morra, condição para não continuar a submeter-se ao seu poder falocêntrico, ao poder do homem que odeia e simultaneamente ama com desespero. Atrevo-me a afirmar(como diria Freud), verificar-se em D. Fernando uma questão edipiana por resolver. Razão para se falar de homossexualidade? Talvez, embora hoje, muito discutível, pois todos os símbolos da sua "identidade", - de uma identidade que lhe é imposta do exterior, e que o castra -, são a principal razão que o impede de amar, de possuir o “amor verdadeiro”. O seu amor, como todo o verdadeiro, é o amor dos condenados (de certa forma, embora noutra perspectiva, o mesmo acontece entre D. Pedro e Inês, pelo menos ao nível da leitura literária-histórica), dos que estão fora do sentido dominante, dos fora da lei e da ordem, social e moral. Por isso, o “bobo”,(personagem fortíssima da literatura, nomeadamente no teatro shakesperiano), o "bobo Fernando", onde se afronta a ordem instituída, mas em cuja "desordem" estamos mais próximos da verdade – e, neste caso, da verdade do amor. É, tal como refere Charles Bernstein, num ensaio que me foi dado a ler numa aula de Poética e Escrita Criativa, é a comédia e/ou cómico(não a ironia "educada"): a "estilhaçar" a ordem do real. Todo o final do texto é pathos(excesso) e grotesco, erro e criação, morte e vida e morte. Uma visão do amor, como sinónimo da visão do inferno, mas, como referi, sem existência da culpa - um inferno sem culpa. Talvez o que nos fica seja o temor perante a transgressão, mas desligada da culpa. Por isso, atrevo-me a considerar este conto uma celebração do amor, desse amor puro e transgressor. Porque o amor é sempre uma afronta a todo o sentido instituído. É a liberdade absoluta perante qualquer ordem e/ou poder instalado, seja ele social, político, moral, cultural ou religioso. Uma liberdade perante todas as formas de linguagem e seu poder. Concluindo, estamos perante um texto extraordinário, onde o cenário de Coimbra se apresenta como o ideal para a história e para a pureza do amor. Amor, que, através da palavra de Mário Cláudio, procura a liberdade absoluta do ser humano, para um sentido outro, na vida e na morte.
Texto apresentado no Anf. IV da Faculdade de Letras/Universidade de Coimbra, Dezembro de 2005 (Comemorações dos 650 Anos da Morte de Inês de Castro).
João Rasteiro

sexta-feira, 2 de maio de 2008

Intervenção na III Bienal de Poesia de Silves

Fotos de Sebastião Salgado
Poesia, Poeta, Poema – Linguagem

Partindo da epígrafe de Dora Ferreira da Silva, começo por afirmar uma posição totalmente contrária, mesmo de oposição feroz, ao referido na epígrafe supradita.
Naturalmente que o aprender de regras (o iambo, o verso livre, o soneto, a quadra, a aliteração, a assonância, etc) não é um atestado de certificação que transformará alguém em poeta, ou pelo menos em bom poeta, mas só o domínio mais ou menos soberano destas regras permitirá depois ao escritor, ao poeta, a ousadia e muitas vezes apenas o sonho de reelaborar as palavras, a linguagem, numa página em branco.
Picasso afirmou que quando tinha quinze anos sabia desenhar como Rafael, mas precisou de uma vida inteira para aprender a desenhar como uma criança. Para isso foi preciso primeiro aprender e dominar a técnica.
Como refere Maiakovski no ensaio Como fazer versos: “Na obra poética, a novidade é obrigatória. O material das palavras e dos grupos de palavras de que dispõe o poeta deve ser reelaborado. (…) Material. As palavras. Fornecimento constante aos depósitos, aos barracões de seu crânio, das palavras necessárias, expressivas, raras, inventadas, renovadas, produzidas, e toda outra espécie de palavras”.
No início de um amargurado e desmotivador século XXI, a poesia tem também de se interrogar, de produzir em si mesma uma atenta reflexão sobre a forma mais adequada de questionação e representação, não do mundo, mas de mundos, de mundos muito próprios, de mundos enraizados nos seus códigos e convicções, impondo quase programaticamente (e não me refiro, em sentido lato, a posições políticas, apesar de o uso da palavra através de um poema não deixar de ser sobretudo um acto político, um acto de poder enquanto tal) uma forma de intervenção na comunidade.
Charles Bernstein, um dos nomes mais destacados do movimento LANGUAGE, afirma estar hoje mais interessado na forma de dizer, do que no “recheio” que se tem para oferecer, porque a linguagem poética tem de ter acção, tem de intervir, sendo que se paga o preço por se estar mais disposto a representar do que actuar. Daí ser natural para ele que o que a poesia trabalha é mais importante do que o que a poesia possa dizer.
Se Harold de Campos, no livro “O Arco-Íris Branco”, já refere que “O social na poesia é a linguagem; é pela linguagem (pela função verbal, como refere Tinianov) que a literatura se relaciona com a série social”, Bernstein vai mais longe, desejando que “o barulho social seja um som que a poesia pode não só fazer, como também ecoar e ressoar” e para isso defende que quase sempre lhe interessa mais a forma como se diz, do que aquilo que se diz. “O que a poesia trabalha é mais importante do que o que a poesia diz”, porque, como refere, a poesia terá cada vez mais de ser uma voz que actue fortemente como se fosse sempre uma oportunidade única.
Aliás, repare-se no facto extraordinário, de um escritor como Flaubert, em pleno século XIX (embora se refira à prosa), afirmar que o que importava mais para ele não era a história, mas o modo de escrevê-la. Porque de facto, esta é sem dúvida a matéria da criação literária: a linguagem, e o que realiza a escrita, o poema, não é a inspiração, mas a expressão, o trabalho na pedra, o trabalho agreste com a palavra.
Assim, e embora saibamos que é uma ilusão poder dominar a linguagem (porque sendo ela o grande poder sobre a terra, é ela que nos domina, nós apenas poderemos ambicionar a reorganizá-la e a contê-la) deve-se estabelecer, ou pelo menos devemos estar preparados para estabelecer algumas regras no acto de criação, até porque é essencial que a arte, a poesia, a escrita, sejam encaradas (sobretudo pelo criador) como acto e não como produto, e para isso é preciso realmente aprender de alguma forma as regras. E depois, aliar essas regras com o fôlego, mais do que com a inspiração, do criador, do poeta.
O poema, sendo uma construção permanente, acto ininterrupto, seja sob a forma sonora, imagética, de pensamento, ou de outros quaisquer recursos, propõe-se naturalmente a um efeito estético, que se diferencia da simples observação e reflexão do real. Daí muitas vezes colidir e discordar com as normas padrão do uso da linguagem, criando uma sintaxe outra, um léxico, uma regra outra (mas é sempre uma regra), porque o poema não diz algo; não é produto; ele é esse algo, é acto incessante na experimentação e questionação de mundos (não do mundo) e da própria linguagem.
Logo, como referia Picasso, só aprendendo, só apreendendo as regras, será possível construir-desconstruir, construir-desconstruir, construir-desconstruir, porque a inspiração por vezes existe mas é preciso que encontre o artista a trabalhar, ou seja, é necessário dominar o mais possível as técnicas de pintura, e neste caso a técnica da poesia e da linguagem, para ousar fazer um poema branco sobre o branco, um quadro branco sobre branco, como fez Malevitch.
Décio Pignatari, no livro “Comunicação Poética” refere que “O poema é um ser de linguagem. O poeta faz linguagem, fazendo poema. Está sempre criando o mundo (eu reafirmo, criando um mundo). Com isso, o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos. É por isso que um poema parece falar de tudo e de nada, ao mesmo tempo”.
Só o conhecimento absoluto de seu métier liberta o artista para a procura do desconhecido, para a explosão da imaginação. Se Picasso conseguiu alcançar a libertação das regras e do jugo da forma foi justamente por dominar estas mesmas regras e forma em sua total plenitude.
Por sua vez, Chomsky caracteriza o facto linguístico em dois níveis não separados: o nível da competência (domínio técnico da linguagem) e o nível do desempenho (aquele em que o falante e o escritor cria tendo como suporte o nível de competência).
A poesia, o poeta, o poema – a LINGUAGEM – com o seu sopro e as suas regras, transgredindo se possível em si mesma (porque não existe uma não linguagem, e se ambicionamos uma linguagem outra, provavelmente estaremos a falar das cavernas mais profundas da linguagem que ainda não conseguimos alcançar) criando, reelaborando em contínuo acto de poiésis, numa obscura dimensão onde se encontram o instinto e a técnica.

Como refere o poeta búlgaro Georgi Gospodinov no poema “Técnica para Fazer Filetes de Textos”:
.
1. O peixe do texto (e também o texto de peixe) deve ser
consumido depois de a espinha dorsal e de as espinhas
das consonantes serem removidas. Reparem que nas
crianças pequenas os primeiros peixes (textos) são fofos e
quiidos (e não queridos) compostos principalmente da
alma-polpa macia das vogais. Conforme vão crescendo,
espinhas pequeninas, rijas, cada vez mais r-r-r-ijas
ganham raízes nesta polpa.

2. “AMOR, SOU DELICIOSA?”
As palavras são pequenos peixes
Com muitas espinhazinhas-consoantes
Deixa que eu tiro-tas
Antes de me derreter na tua boca.
“AO, OU EIIOA?”
.
3. Esta técnica pode ser aplicada com sucesso na absorção
(de textos clássicos já prontos.
Em filetes a polpa do texto ecoa, dotando-os de uma
(beleza primitiva.
Assim
Ela era uma aparição deleitosa
quando primeiro brilhou ao meu olhar
faz-se
ea ea ua aaião e eioa
uao ieio iou ao eu oa
As espinhas das consoantes extraídas qnd prmr brlh m lh
podem ser atiradas a um cão que passa.
au – au – au au
Ouve!
Nem uma única espinha
na voz do cão.

Silves, 25.04.2008

João Rasteiro

Guns N Roses - Knocking On Heaven's Door

http://margensdapoesia.blogspot.com/

domingo, 30 de março de 2008

O Búzio de Istambul

Menino poeta - Poeta menino - POETA


O poeta
Apenas vi mais um condenado, simplesmente
invadindo paisagens como demência de pássaros
o poeta com mais sangue que água - festim
mais ingénuo que agonia - corpo vasto despido
como se encobrisse cada golpe o mênstruo novo.

Na cilada guinchos sagrados triturando chagas
forma robusta de lume rasgada pelos dentes
sulco álgido da alucinação sedenta de banquetes
farejando o eclipse materno porque desígnio,
poeira, onde bichos se devoram extasiados entre si.

E ele, que se via atravessado pelas garras prenhes
flores virgens nas entranhas agonizantes de sol,
da carne à terra a matéria extraída do doce crime.

Ao seu lado as suas próprias vísceras nuas abertas
lágrimas cosidas numa tábua aplainada de desejos.
A seiva do mundo espetada na pele como esporas
vozes órfãs reunindo-se oferenda contra a morte.

Aí nasce pela primeira vez o clamor do relâmpago
o sangue sem nome gerando a pupila do besouro.
Ninguém já sabe o que busca entre a ávida língua.

In, O Búzio de Istambul - 2008

sábado, 1 de março de 2008

O Búzio de Istambul


Encontro com Herberto Helder
A Luís de Camões

Há algures uma cidade interrompida onde a luz
já se vai perdendo prostrada entre as âncoras
como estiletes arejados enjaulados nas palavras,

deves ir pela tarde mágica das trovoadas ávidas
quando Cascais vai morrendo um pouco menos
apesar de o miolo da carne infindável ser sangue
emergindo como fungos atiçados junto à pele
em ciclos de intempéries e migrações filicídias,

vai procurá-lo nos jardins embora não te fale
(esquecerás que transportas o contágio das dores
as manhãs ressuscitarão secas sobre os espigões
ao longo das vozes aguçadas a cidade coagulada
ardendo nas candeias sob o ritual dos êmbolos),

pergunta na praça das súplicas enxutas dos velhos
por aquele homem que menstruou a sílaba nua
quando na cidade passava o ar odorífero das ilhas
ele que lutou nos campos da cal contra as cobras
para que a escassa estria ainda se ouça torrencial,

no absurdo da busca na casa do espectro da areia
reside a transparência materna os últimos dias
senta-te sob os salgueiros com a cabeça inclinada
ouve o vento e cheira as entranhas certas da morte
o corpo estilhaçando-se em múltiplas direcções,


pára não digas nada ao ouvido das nascentes
(enquanto escutas as patas frágeis da magnólia
bebe a cidade pelo sexo aberto das fêmeas azuis
guelras por onde resfolega toda a luz preambular
como se fosse a redentora faísca o corpo vegetal),

aí, junto à água, o engenho das bigornas brancas
o fogo das mãos sagazes ardendo como ofício puro
casulo entre as bilhas onde habita o bafo do poeta.
------------------------------------------------------------------------------------
(...)
Os lugares são fabulosos quando digo lugares. Nas ruas e no largo da Rigueira não passava ninguém, a aldeia hibernava, estava morta, dormia, dormias pesado, pai. Podia abrir uma fenda nos dedos, e respirar o ar fresco das cidades, libertando-me deste sopro interior, deste sopro que cicatriza nas feridas abertas no Outeiro ao fim da tarde, na inquietação do corpo quanto ao destino, quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, porque o amor é forte como a morte, mais forte que a eternidade dos mortos – te procurava na pureza do linho e das mortalhas sagradas, pai. E nem me despedi, pai.
.
E hoje, na Primavera em que todas as memórias morreram, enterrei o teu nome num canteiro de magnólias de cristal e olho-o de longe, para que a minha boca não se rasgue mais em suas arestas. E ele ferve. E colho flores e as minhas vestes ficarão perfumadas. Regresso quando a palavra se detém no sémen dos amieiros, enquanto construo a memória de que eles fazem parte, com a solidão nua e intacta das vozes que os protegem de mim.
João Rasteiro

sábado, 23 de fevereiro de 2008

Traduções III

Mentre il silenzio perdura

Nel centro docile dell’attesa
cattedrali sanguinano gli occhi mordenti la calma.
E l’olio e il vino, sciolsero
il seme in bozzoli dorati, che
gli alberi fendettero.
Il corpo, lo divorano i metalli incendiati
nella danza dei polmoni, che bambini
rinnegarono nell’eclissi.
Forse nel marmo calcificato di promesse
l’orto si purifichi, cercando nel candore
della luce, il puro tatto dei suoni.
E l’uomo strazia il respiro, lapidato nella
saliva delle unghie, dove uccellini volano tra le dita
curvate sul volto di acacie.
Nel sale di questo pianto, l’apprendista segreto
di sogni e luce.
Su queste vetrate dal veder passar
le parole, dalla polvere che si scuote,
accetto il silenzio come un amante.


Enquanto o silêncio durar

No centro dócil da espera
catedrais sangram os olhos que mordem o sossego.
E o azeite e o vinho derreteram
a semente nos casulos doirados, que
as árvores talharam.
O corpo, devoram-no os metais incendiados
na dança dos pulmões, que crianças
renunciaram no eclipse.
Talvez no mármore calcificado de promessas
o horto se purifique, procurando na candura
da luz, o puro tacto dos sons.
E o homem rasga o sopro, lapidado na
saliva das unhas, onde pássaros voam pelos dedos
curvados no rosto das acácias.
No sal deste choro, o aprendiz secreto
de sonhos e luz.
Nestas vidraças de ver passar
as palavras, desde o pó que se sacode,
aceito o silêncio como um amante.

La danza delle madri

Nella bellezza incurabile delle ferite
si alimentano madri senza tregua.
Nei fiumi in secca, battono e battono i cuori
alimentati da sangue freddo e spesso.
Che è livido. Che cerca le radici.
Il cuore è una strana bestia, che va camminando
goccia a goccia. E le ferite imprudenti
si approssimano alle madri, imprudenti al peso
di ogni respiro. L’amore eternamente feroce.
E le ferite delle madri, sono ogni volta più belle.
La paura cammina violentemente più vicino,
nel corpo, nel viso, nelle vertebre e nel ventre,
dove si ripara con il suo volubile volume
il silenzioso amore di madre.
Sotto il fogliame dell’acqua, madri stanche
dell’ aridità che le tocca, si incendiano attraverso
i figli. E i figli, quel piombo conficcato
nelle ali, quel progetto che sopra il mar si estende
alimenta le ferite mediante i tendini.
Le madri piluccano sulla sabbia la loro rotta chiara,
fino alla fine del mondo . Come per l’ultima volta.
Sulla montagna, un figlio si incorpora nella bellezza
incurabile delle ferite, mentre madri tastano
la pietra, fino a divenire fiore.
Talvolta sanguinano e cantano, asciugano gli occhi,
strappano i sessi e in permanente lotta, corpo
a corpo , l’amore si estende, ma i gesti
sono freddi, in questo camminare osceno
di persone senza frutti. Deve entrare in una goccia, tutto
il tempo, tutto amore, di una vita senza storia.
Tradução: Alberto Sismondini
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A dança das mães

Na beleza incurável das feridas
alimentam-se mães sem trégua.
Nos rios secos, batem e batem os corações
alimentados em sangue frio e espesso.
Que é lívido. Que procura as raízes.
O coração é um bicho estranho, que vai caminhando
gota a gota. E as feridas imprudentes
aproximam-se das mães, imprudentes ao peso
de cada sopro. O amor eternamente feroz.
E as feridas das mães, são cada vez mais belas.
O medo caminha violentamente mais perto,
no corpo na cara, nas vértebras e no ventre
onde se abriga com seu volúvel volume.
o silencioso amor de mãe.
Sob a folhagem da água , mães cansadas
da aridez que as toca, incendeiam-se através
dos filhos. E os filhos, esse chumbo cravado
nas asas, esse projecto que sobre o mar se estende,
alimenta as feridas pelos tendões.
As mães debicam sobre a areia a sua rota clara,
até ao fim do mundo . Como pela última vez.
Sobre a montanha, um filho incorpora-se na beleza
incurável das feridas, enquanto mães tacteiam
a pedra, até ser flor.
Por vezes sangram e cantam, secam os olhos,
arrancam os sexos e em permanente luta, corpo a
corpo, o amor estende-se mas os gestos
são frios , neste caminhar obsceno
de pessoas sem frutos. Há-de caber numa gota,
todo o tempo, todo o amor, de uma vida sem história.
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La danza delle madri

Nella bellezza incurabile delle ferite
si alimentano madri senza tregua.
Nei fiumi asciutti, battono e battono i cuori
nutriti di sangue freddo e denso.
Che è livido. Che cerca le radici.
Il cuore è uno strano animale, che cammina
goccia a goccia. E le ferite audaci
si avvicinano alle madri, audaci al peso
di ogni soffio. L’amore eternamente feroce.
E le ferite delle madri, sono ogni volta più belle.
La paura cammina violentemente più vicino,
nel corpo, nel viso, nelle vertebre e nel ventre,
dove si annida con il suo volubile volume,
il silenzioso amore di madre.
Sotto il fogliame dell’acqua, madri stanche
dall’ aridità che le tocca, si incendiano attraverso
i figli. E i figli, questo piombo inchiodato
nelle ali, questo progetto che si estende sul mare,
alimenta le ferite attraverso i tendini.
Le madri beccano sulla sabbia la loro chiara rotta,
sino alla fine del mondo . Come per l’ultima volta.
Sulla montagna, un figlio si fonde nella bellezza
incurabile delle ferite, mentre madri palpeggiano
la pietra, fino a diventare fiore.
A volte sanguinano e cantano, asciugano gli occhi,
arrancano i sessi ed in lotta permanente, corpo
a corpo , l’amore si estende, ma i gesti
sono freddi, in questo camminare osceno
di persone senza frutti. Così da entrare in una goccia,
tutto il tempo, tutto amore, di una vita senza storia.
Tradução: Angelo Manitta
(Oltre la siepeAntologia del premio Publio Virgilio Marone – 2004)



domingo, 10 de fevereiro de 2008

Traduções II

Poema de los jardines ausentes

Hoy recorrí todos los jardines de la tierra
y estoy a tus pies con las manos vacías, mi amor,
los jardines sólo respiran ese desnudo fulgor
rutilando caligrafias en el mismo centro de la piedra.

Mañana volveré a recorrer todos los jardines
al ritmo casi inmóvil de un secreto,
en un murmullo que preserve el aliento
para sumergilo en una boca de mujer.

He de recorrer todos los jardines sagrados
que habitan delicados y densos laberintos,
y hallar los vocablos de los pétalos de la rosa
que unen lo entredicho al centro de las palabras.

Y es como si las rosas naciesen de los dedos
como una raíz imitando los frutos, mi amor.
In, Cánticos de la Frontera - ( Trilce Ediciones - Salamanca),2005
Tradução de Alfredo Perez Alencart
....................... OOO..........................

Poema dos jardins ausentes

Hoje corri todos os jardins da terra
e estou ao pé de ti de mãos vazias meu amor,
os jardins só respiram esse fulgor desnudado
a rutilar caligrafias mesmo no centro da pedra.

Amanhã voltarei a correr todos os jardins
ao ritmo quase imóvel de um segredo,
num murmúrio que preserve o alento
para mergulhá-lo numa boca de mulher.

Hei-de correr todos os jardins sagrados
que habitam subtis e espessos labirintos,
e encontrar os vocábulos das pétalas da rosa
que unem o interdito ao centro das palavras.

E é como se as rosas nascessem dos dedos
como uma raiz imitando os frutos meu amor.

Prefácio ao livro "No Centro do arco

Em "A Respiração das Vértebras", primeiro livro do poeta João Rasteiro, finalizava-se com um pequeno passo de um outro texto, publicado na 1º série da revista "Oficina de Poesia", a cujo Conselho de Redacção o autor pertence. A "collage" foi identificada apenas por alguns, mas é o espírito que subjaz à utilização dessa técnica, bem como o contexto em que o trabalho se desenhou, que me importa aqui referir. Falo do diálogo que uma pequena comunidade poética vem a desenvolver há já cerca de 10 anos. João Rasteiro integra essa comunidade, criada no âmbito de um curso livre de Escrita Criativa (Oficina de Poesia) título que passou à revista, oferecido pela Universidade de Coimbra e dirigido por mim própria. A "sagrada" - autor/ia-autor/idade - constitui-se como uma espécie de núcleo temático do debate, num curso em que o individualismo "inspirado" e "genial" é não só questionável mas, quase sempre, também dispensável.
A consciência de que usamos como material as palavras da tribo e a certeza de que o nosso trabalho poético - que entendemos como trabalho de reinvenção - só faz sentido no seio da comunidade mais vasta, leva-nos a afirmar, com Robert Duncan, entre outros, que todos somos derivativos. O poema surge, assim, "ditado" pelas vozes que enchem a nossa experiência pessoal: as vozes da história e da cultura da tribo em que nos incluímos, as vozes de toda a evolução do universo em cujo movimento participamos, as vozes de toda a tradição literária de que fazemos parte (mesmo pelas vozes que aí rejeitamos) - mas também pelas vozes que fazem a insignificância(tão significativa) do nosso quotidiano, em que, para alguns de nós, existem as vozes de outros poetas com quem nos encontramos, semanalmente, para trabalhar em conjunto (e isso pode traduzir-se, por exemplo, em poemas escritos a várias mãos, em "collage" em variações sobre poemas de outros, etc).
O final de "A Respiração das Vértebras" surge assim também, de certo modo, no início deste novo livro de João Rasteiro: "No Centro do Arco" começa com duas epígrafes e uma delas é de Robert Duncan, tal como era de Robert Duncan aquele título do poema final no livro anterior,"A Grande Deusa", por mim, já antes, apropriado. Digamos que, no nosso diálogo semanal, certas obsessões se vão tornando centrais e que vejo, neste trabalho de Rasteiro, uma espécie de resposta às minhas próprias obsessões, que partilhei (para o bem e para o ma) ao longo de vários anos de estudo sobre o trabalho de um dos maiores poetas norte-americanos da segunda metade do século XX. Numa imagem de círculos concêntricos, a obra de Duncan é central, decerto inaugurando novos centros de movimento que, de forma complexa, se alargam, inter-agindo - com o italiano Salvatore Quasimodo, por exemplo, a quem pertence a segunda epígrafe a este livro.
As duas epígrafes remetem-nos, de imediato, para a unicidade entre a vida e a morte. No centro, entre as extremidades desse arco - e os ecos de "Bending the Bow" de Robert Duncan surgem bem claros - se colocará a voz do poeta deste livro, já duas vezes premiado na Itália de Quasimodo, com os poemas: "Enquanto o silêncio durar"(31),"Menção Honrosa", Concurso Internacional "Poesie Sulle Piastrelle", Zacem 2001;"A Dança das Mães" (41), Segnalazione di Merito", Concurso Internazionale "Publio Virgilio Marone", da Accademia Internazionale "Il Convivio", Castiglione de Sicília, Itália, 2003.

No centro de um arco situado no coração da terra, o corpo se erguerá em direcção à luz (da vida) e, nesse acto de encontro criador, amorosamente, irá criar a sua própria morte - a sua própria e repentina "noite",diz Quasimodo: dois raios de uma mesma luz, numa única promessa que é passado, presente e futuro.

Também como Duncan - e os românticos, em geral - João Rasteiro escolhe a metáfora da árvore como corpo representativo, devolvendo-nos, desde logo, a uma concepção de escrita que se pretende orgânica e física. A primeira secção do livro,"Tronco", procura a visível concretude do acto/corpo/poema. Logo no seu primeiro texto, deparamos com o divino hálito inspirador feito agora respiração humana, bafo nos dedos que agem sobre a palavra - acto nas linhas do arco. A escrita surge como acto de amor e vida, no tempo único entre caos e ordem, entre trevas e luz, trabalho realizado numa espécie de vigília que passa, do assombro, à "lucidez do corpo". Essa é a "nitidez" do processo, uma nitidez – uma forma/poema/corpo do poeta - "em constante mutação", como os dedos do autor/criador. A presença do corpo, a presença da pura materialidade que é a forma, surge como única e total presença do sagrado.
De resto, todo o vocabulário escolhido por Rasteiro se encontra eivado de uma profunda religiosidade, produzindo-se um efeito ritualístico, em que a voz do poeta nos capta, de forma encantatória, como uma voz de sacerdote, a voz daquele que encena o ritual. O tom conclusivo dos textos apresenta-se como uma espécie de catarse: uma espécie de momento de aprendizagem, de momento de iluminação, que se encena uma e outra vez. Por outro lado, este carácter repetitivo parece traduzir também o carácter físico do acto criador, num registo metafórico que nos traz, além da sensualidade, a própria sexualidade como princípio sagrado, presente em toda a natureza: no "sémen dos frutos" (19); no tronco que "avança decidido para o útero do fogo" (20), mergulhando na terra que "é fêmea" (21), no "desenho branco no odor da fêmea" (22), em "lume de cerejas de carícia em carícia"(24). Esta "embriaguez do verbo vegetal" (25) lembra-nos rituais dionisíacos e também o grande poeta do sagrado do amor e da embriaguez, Rumi (veja-se, por exemplo, o poema "Horizonte imediato" (22). Contudo, em Rasteiro, mais do que com a celebração deste amor e desta embriaguez, confrontamo-nos com um processo penoso de crescimento (que é também o da escrita), em que a perda dos sonhos e a procura da lucidez possível se vão desenhando em agonia difícil - por entre a manutenção dos opostos, mais do que por entre antíteses - e onde o poeta aprende "difícil (...) a arte do silêncio" (25). Trata-se de uma arte que se faz em luta - e o carácter agónico presente na metáfora do arco e da flecha assume aqui a sua verdadeira dimensão.
No poema "Círculo" (23), o poeta fala-nos da imensa crueldade deste movimento, desta luta, em que a abertura para uma nova imagem parece irromper violentamente dos membros, num espécie de parto que, como sabemos, para criar, destrói: "parte" a imagem/corpo de onde nasce, como se dois arcos (de vida, mas também de morte) se acoplassem para formar um só círculo. O início das duas primeiras estrofes faz-se pela negativa, bem marcada pela pausa:"Ninguém"; "Nada".Porém, a terceira estrofe inicia-se na plenitude: "Extensa". A morte paira e, perante essa sombra, o trabalho alquímico sobre as palavras manifesta-se no objectivo, sempre inatingível, de dizer toda a dimensão do real. A consciência da sombra leva ao desejo, às "palavras em fogo", mas o acto pela vida revela-se como um "suicídio calculado", no conhecimento de que toda a criação transporta a sua própria destruição. No último poema de "Tronco", "O sopro da língua" (28), o poema/corpo/tronco surge-nos como "arco do sopro/do som" e, nele, todas as forças da natureza - a linguagem incluída - se encontram, "a pulsação das sílabas sobre os pulsos abertos", para se reconhecerem como matéria desse mesmo corpo(numa irmandade que evoca S. Francisco), celebrando-se "num só corpo estendido/para uma silenciosa festa de irmãos".
Este silêncio é identificado como a raiz, sendo "Raízes", precisamente, o título da segunda secção da obra. É no silêncio que o poeta mergulha, como amante, dele extraindo alimento. Em "Círculo Total" (32) se fala dessa procura de alimento, numa espécie de pré-história do poema e do humano, em que o poeta se faz caçador, mas também nómada e peregrino - seguindo o trilho e o caminho da palavra, como sustento infinito. Este regresso ao arcaico, à raiz da civilização, mantém-se ao longo de toda esta segunda parte da obra. Nela encontramos o percurso humano: caçador (32), guerreiro (33), ferreiro e alquimista (33-34), trabalhando os metais na demanda da luz."Na lucidez do círculo" (35) parece descobrir-se a escrita, "um espaço onde se lêem linhas", que é "um espaço mutilado", onde encontramos, de novo, "o bafo do animal vacilante", a respiração humana - do selvagem/poeta que, na palavra, procura o fim do movimento: um sonho/sopro que termina calcinado pela própria luz/fogo que tanto deseja como absoluto. Esta parece ser a lucidez do círculo.
A água e a pedra acalmam este fogo, logo no poema que se segue, assim, de novo, se reconhecendo a unicidade divina e absoluta do tempo, do corpo e do sonho. Neste "lugar legível" (36), que adiante surgirá como "transpiração da terra", o poeta se alimenta (37). Quase poderíamos dizer que esta secção do livro é também sobre o cultivo, a(gri)cultura da palavra, que é também a terra e o corpo da amada. Nesta palavra/terra/amada, o poeta penetra, fazendo-se raiz, para daí se erguer como árvore. Daí, a necessidade do sulco do arado: a necessidade das linhas da escrita do poema. Há que macular o corpo da terra/linguagem/amada para poder sobreviver: esse é o pecado inevitável e a queda feliz - "e depois sentir-me capaz de caminhar no incêndio/enfeitado nas tranças da serpente"(40), diz o poeta. A imagem final desta segunda secção do livro deixa-nos, então, os dedos do poeta a soltar a flecha, uma flecha feita "borboletas" que, em vez de voarem para o alto, voam em direcção à terra, assim a fecundando.
Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em metamorfose. Não se trata de sobreposição de contextos, mas de uma passagem sintáctica, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em metáfora, através de uma multiplicidade de contextos. Lidando com um léxico de enorme simplicidade, quase sem recurso a abstracções, o poeta consegue, assim, um trabalho em que a complexidade se traduz num excesso quase barroco, de onde emergem momentos de iluminação que, circularmente, se repetem.
Em "Folhagem", última secção do livro, as imagens de aves e de voo dominam. Entre as duas extremidades do arco, entre a vida e a morte, só o acto é libertador. Em última instância, só o movimento das folhas importa, só a flecha solta para uma qualquer direcção. No desejo, sempre a mesma ilusão - a ficção credível, que nos sustenta a vida, diria Wallace Stevens: a sua Suprema Ficção sendo a poesia. Rasteiro chama-lhe "a ilusão maior" (45), para onde há o infinito "retorno" (46). Esse é o "rito inesgotável" (49), em que a redenção se torna possível. Algo de arcaico, "teia dos velhos deuses", chama-lhe o poeta, para cobrir uma "ignorância originária".Sobre esse rito, sempre a mesma morte pairará mas, na consciência da lâmina, a vida continua a fazer-se:"as florestas respiram na planície do corpo".
O voo da árvore/poema/poeta é vertical (53), sempre em direcção à luz e à terra, sempre no centro do arco; o ciclo sempre a repetir-se na folhagem que "regressa eternamente/e forma pares imprevisíveis" (53) - e forma novas associações, e forma novas metáforas, poderíamos dizer.

O último poema de No Centro do Arco deixa-nos a dificuldade do caminho, "Sob o azul" (55), e uma árvore alquímica, imperfeitamente criada, na ilusão da permanência que é a permanência dos metais: em vez de ouro e luz, esta árvore é "bronze aceso como luz" e "ferro" que, porque criação humana, será "fulminante" para o seu criador. No entanto, esta árvore revela-se também como o novo hálito deste criador, "as suas mãos ávidas de boca" - a suprema ilusão da criação humana, sob o azul, no centro do arco. Esse é o lugar/tempo único que o poeta João Rasteiro conhece como seu. Essa a sua reconhecida ilusão, o seu único absoluto, a sua única promessa.
GRAÇA CAPINHA - Professora, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

Livros III

Onde se perde a asa
Calcário de flores despidas
nos homens com cio já purificado
o silêncio do barro
em lãminas de aço róseo
e nas mãos o óbolo último
onde se perde a asa de outrora
anónima e vazia
desflhando relâmpagos sobre mim.
.
Se o paõ for invadido pelo sal
vejo frágeis pulmões em agonia
no silêncio que irá prostituir as palavras.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Poema IV

Algum dia o teu corpo alastrará
como cães sem boca e olhos esboroados
serás escondido em toalhas de musgo
um embrulho de carnes malditas
onde os indesejados pernoitam velados
nas noites em que os ecos se dissolvem nus.

Os teus irmãos esquecerão o teu aroma
como no principio divino dos abutres
no silêncio acercará alguém à cidade
para apagar os vestígios desnecessários
nas vozes que habitam os íntimos pomares
os frutos rutilantes nas escoras urbanas

nesse lugar tu estarás na dilatada blasfémia.

Ensaio II

Não se nasce poeta. No entanto, acredito que alguns nascem com algumas propensões para poderem vir a emboscar-se no acto poético. Contudo, a leitura, o estudo, a prática, o intenso exercício de oficina, escrevendo e reescrevendo, são essenciais para talvez se vir a ser um excelente poeta. E é tudo isso que Andityas Soares de Moura é, fez e continua a fazer. Conjuntamente com nomes como Iacyr Anderson de Freitas, Claudia Roquette-Pinto, Ricardo Aleixo, Claudio Daniel, Fabrício Carpinejar ou Márcio André, é, sem dúvida, hoje, um dos mais expressivos poetas da poesia contemporânea brasileira.
Soares de Moura possui a capacidade de conjugar a sua alta erudição (ao grande domínio da língua e cultura latinas, alia um tratamento de grande intimidade com os poetas provençais e escreve com a mesma facilidade e docilidade com que fala mineiro) com a realidade que o cerca como espigões acesos, "um/som//:o do peito sendo aberto/".
Em Soares de Moura encontramos uma poesia quase sempre espalhada no branco da página, assente em formas rebeldes, mas ajustadas numa escrita concisa, onde a preocupação extrema com a estética das palavras é reflectida na sua sonoridade. Sendo um poeta virado para o real, para quem a poesia é a arte do fazer, é a arte e faculdade poética, mas sempre como poiesis – criação, cri(ação) sob todas as arestas -, a sua poesia é "tudo que respira/canta a glória de estar/por enquanto,//e só por enquanto,//vivo/".
Soares de Moura não concebe a arte poética, se esta não questionar constantemente o real, como se a poesia fosse o último guerreiro atento à tirania do poder, à tirania da própria linguagem. A arte e a poesia ao serviço do carpe diem, do ensejo único, o nosso.
Como refere o poeta Glauco Mattoso, a poesia de Andityas Soares de Moura, "oscila entre o moderno e o arcaico, com traços concretistas namoriscando o mais arrevesado latinório", que embebida numa alta tensão lírica, fará decerto de Andityas Soares de Moura um dos nomes maiores da poesia brasileira deste desencorajado início de século.
João Rasteiro(*), Dezembro de 2007
(*) Texto incluido na Badana/Orelha da Antologia de Andityas Soares de Moura: "Algo Indecifravelmente Veloz" - edium editores

Cartas III


Recenções I

Graça Capinha e João Rasteiro
Gostaria de começar esta apresentação da primeira obra deste jovem autor, chamando a atenção para o seu título: Respiração das Vértebras. Porque é um título que tem que ver com uma grande tradição da escrita desde o início de um século que entretanto acabou, o século XX. Fala-se hoje muito da escrita do corpo e do corpo da escrita, mas foi a grande revolução modernista, de há precisamente um século atrás a grande responsável pela recuperação do corpo para a literatura. E a ruptura que isso significou não se deu apenas, e nem se quer de forma mais importante, ao nível dos paradigmas éticos ou morais. A ruptura mais importante deu-se e continua a dar-se, porque ainda não acabou e o seu desafio continua - ao nível dos paradigmas dominantes no próprio pensamento do século XX e deste agora nosso século XXI.
Qual é o corpo da escrita? Corpo humano e corpo da linguagem? Qual a natureza da sua materialidade? Qual a natureza da matéria humana que lhe dá forma? E ao pensamento forma? E ao pensamento transfigura? E nessa transfiguração, a nós próprios e à imagem do mundo nos faz irreconhecíveis?
Diz o poeta João Rasteiro, em Mutação (pp. 26-29):

1 (...)
a boca cheia do corpo
onde o coração se consome agachado e devagar
uma sincera cegueira
desde a respiração palpitante entre as bocas
e as guelras onde levita a carne.
(...)
3
Entrando pelas fendas, batendo, rebentando
nos brônquios a válvula do corpo
de um corpo de pedra em perda
prisioneiro de formas em que não cabe
polpa asfixiando o caroço
nas raízes doces do útero permissivo.
4
Onde o fogo lambe as cicatrizes
há um homem debaixo da pele.

Lia, há apenas alguns dias, com os meus alunos de poesia contemporânea, os poetas ingleses da Primeira Grande Guerra. Alguns daqueles que morreram nas trincheiras, questionavam - então de forma extrema(foi no século XX, e este não parece ir melhor...) - a questão da escrita e do corpo. Perguntavam-se pela escrita no corpo, aqueles soldados/poetas, perante a mutação humana das formas mutiladas. Perguntavam-se pelo melhor dos mundos que a modernidade lhes prometera e deixavam-nos quase sempre na entropia do silêncio ou na exigência do dever de ficar loucos."Só tenho as mãos à frente, entre o rosto e a fogueira", diz-nos Herberto Helder, numa das epígrafes que João Rasteiro escolheu para iniciar este livro. Estas são as mãos que escrevem, as mãos da escrita - que se queimam quando a fogueira se aproxima: a fogueira de um mundo (quase sempre em chamas, neste século ora terminado) que verdadeiramente nos leva ŕ criação: apenas o nosso mundo da matéria e do corpo - sem nada de metafísico. O fogo divino, tal como Nietzsche anunciava na sua morte de Deus, tem por força que se transformar num fogo meramente humano, na sua grandiosa insignificância - essa grandiosa insignificância que João Rasteiro escolheu celebrar.

Esta é a fogueira que mutila o corpo e que dolorosamente se inscreve na página, criando novas formas humanas (formas que se procuram mais verdadeiras) através dessa inscrição numa página que arde, pois essa é a página da nossa História. E é a linguagem no centro desta história que este livro interroga e questiona de forma agonista. Como diria um dos meus poetas favoritos, Robert Duncan: um livro que se constrói como uma larva dentro do seu casulo, lutando contra a própria matéria que lhe dá vida, para se libertar e nascer forma outra - uma borboleta."Rebentando os diques dos seus membros" (p.17),afirma Rasteiro - lutando contra o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de por força ser outro corpo. Podemos ler em "Sobrevivência" (pp. 15-18):
1
uma quantidade de sopro e dor
apenas com a luz das suas feridas (...)
3
O canto que se perde nas searas da língua
a subtileza de desenhar promessas
rebentando os diques dos seus membros
desafiando a teia que inunda a nudez da carne
na hora inquieta da respiração suspensa. (...)

Um poema sobre a sobrevivência dura, agónica, que encontra o seu limite na forma que não dá mais de si: o fruto maduro. O mesmo limite que encontramos na secção 4 do mesmo poema, em estrofe de verso único:" A sobrevivência dura num gosto de ameixas maduras". Estamos perante uma poesia que se escreve nos limites, nos limites da criação (o fruto maduro) e nos limites da linguagem que a serve. Esta é a poesia inaugurada pelo modernismo no que o modernismo significou de questionação da própria modernidade: de questionação do sentido do moderno e do progresso. Este, o corpo da linguagem que se constitui como ruptura epistemológica, ainda impossíveis de conceber. Aí reside o limite e o agonismo, porque é uma luta a partir de dentro, uma luta pela imensa possibilidade em cuja margem nos damos conta existir:
"A Margem"
(...)
2
O vento bate nos ramos da margem
enquanto a pedra queimada no centro
anuncia as bagas
que rolam na ressaca cozida
em pêndulos e frágeis
a nudez e a cegueira
o mosto aberto do búzio encantado.
3
Até ao centro onde pulsa a margem
enredo a respiração sob os dedos ponteados
no búzio onde as constelações se incendeiam
ao sopro das pétalas repisadas
na cor moribunda dos frutos. (...)

Nascemos pois para a infinita possibilidade e não para a necessidade; nascemos apenas para uma mortalidade feliz em que o todo da criação permanece por terminar: o todo da criação onde tudo permanece incompleto - à espera da acção, à espera da participação individual na transformação da matéria, à espera desse acto gratuito que estabelece a relação entre os elementos, a relação entre as palavras, a relação entre os corpos. À espera, tão simplesmente, do princípio repetido e, por isso, co-primordial, de um acto de amor. Esta é uma poesia agonista e de limite, mas também, e simultaneamente, uma poesia em que o processo alquímico do estabelecimento de relações produz a transfiguração per-manente do mesmo e nisso se regozija, celebratória: respirando as vértebras. Como um recém nascido, que inspira pela primeira vez o ar e aí se reconhece corpo, fora do limite do ventre da mãe, entrando agora e apenas no limite de si próprio, no limite das suas próprias vértebras ao ar nos pulmões. Afirma o poeta, em "Respiração das Vértebras" (pp. 9-14):
1
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal. (...)
4
No cerne do fogo na argila da criação
os corpos interrogam as coisas e emudecem
o deslumbramento do primeiro dia
o fascínio da descoberta sobre
um corpo intensamente só. (...)
6
Os corpos necessários no remoinho da garganta
desaparecem como floresta abatida
como a folhagem iluminada das antigas idades
a respiração duradoura e frágil
o salto imortal de uma miragem.

O salto imortal é o repetido salto para a eternidade do processo que é a vida, "respiração duradoura e frágil". As antigas idades recordam-nos, sugestivas, essa passagem do humano pela História, idades que são marcas do que já não está e que contudo permanece. E a garganta faz-se então o remoinho, metonímia do humano e da linguagem, lugar momentâneo e sôfrego querer engolir o mar que é todo da criação. O mesmo lugar momentâneo e sôfrego que é o corpo da paixão do Amante pelo corpo Amado. E o corpo do amante é o corpo do poeta, tal como o corpo da amada é o corpo da linguagem, a própria poesia. Aí o poeta/amante se dá vida, respira as vértebras e se transfigura: corpo de argila que vai cozendo em novo molde, até que adormece "como espiga madura e exausta", diz Rasteiro ("Presságio",p. 23).

Esta é a poesia do nosso século, a poesia que responde à nossa História onde as promessas de mundos perfeitos se goraram, onde o futuro parece ter falhado, sendo preciso reinventá-lo. Este, o mundo onde o poeta tem a responsabilidade de não perder a capacidade de resposta. Para tanto é preciso que os poetas sejam capazes de ousar ir à descoberta do ainda inconcebível, tal como João Rasteiro foi capaz de ousar. Por isso, necessariamente, vejo a poesia do nosso século como investigação epistemológica ou, se quisermos, como uma poesia que necessariamente deve voltar ao sentido etimológico de poiesis: fazer, construir. Urge fazer, reinventando, outras visões do mundo e para isso precisamos cada vez mais dos poetas: precisamos - desesperadamente, estou em crer - desta arte considerada tão inútil no mundo contemporâneo. A poesia será, nesse sentido, uma forma extrema de exercer o político e autores como João Rasteiro incluem-se claramente nessa tradição de demanda poética que nietzschianamente nos exige a felicidade sobre a terra. Assumir essa responsabilidade é uma tarefa difícil, que exige, tal como o poeta afirma, "feroz plenitude" e "rendição humilde", celebrando a forma grandiosa com que construímos catedrais - e cientes, como diria o grande poeta modernista norte-americano William Carlos Williams, no seu poema "Spring and All", de que entramos neste mundo nus, tendo como única certeza, assustadora, o nosso acto de entrada: a enorme dignidade de cada parto para dentro de um mundo de morte. Lembrando Williams, vejamos o poema "Obses- são" (p.42) de João Rasteiro, um poema que se constrói num jogo quase oximorónico com a rima interna:
Vejamos o seguinte poema:

o lugar do sono a maçã precipitada decapitada arqueja
ela o estendal do visível
barco em agonia dicotomia impune
um corpo de outro corpo natural
no orvalho paciente inocente sopro
que enrola vértebras fendidas
ressoando a morte sorte inspirada
em símbolos de feroz plenitude
obsessiva respiração a rendição humilde
alinhada no potencial do corpo
as vozes celebrando assustadoramente
como catedrais o seu próprio parto.

E gostava de terminar, olhando para o poema que encerra esta primeira obra do poeta. João Rasteiro termina com um texto sobre o linho: o linho antigo das toalhas dos partos e dos lençóis dos noivos, mas também, e por que não, o linho das mortalhas. Trata-se de um poema sobre esse tecido puro e fresco que nos aconchegava e nos acompanhava o corpo - que nos aconchegava e nos acompanhava a respiração das vértebras - nos seus momentos mais importantes: o nascimento, o amor e a morte. O tecido puro e fresco que, tal como o corpo, nasce cíclico do ventre materno e eternamente (pro)criador da terra:
"Agonia do linho"
1
No dorso inacessível da agonia
o gelo incendiado do remorso
coze as dores com o desejo
nas asas suaves do bafo mal abençoado
aguardando pacientemente em vigília
o pássaro que procura a infância.
2
A dança mágica dos gafanhotos
anuncia o pólen sedutor
em que o corpo nascido na véspera
se acende em lâminas por dentro
sem medo de enfrentar a serpente
que domina o silêncio da falésia.
3
A boca aberta respirando o canto das cinzas
talvez esconda o contorno do relâmpago
as pálpebras húmidas das inundas máscaras
onde a respiração das vértebras chega a prender
o desespero sobre as colinas do linho.
4
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se vê o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
5
Nos pomares cresce a mortalha do linho quebrado.
.
In, Capinha,Graça (*); Revista "OFICINA de POESIA"(Revista da palavra e da imagem),nº O - II SÉRIE – Coimbra - 2002
(*)Professora de literatura na Universidade de Coimbra, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

Livros II

1.
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Poema III

A memória do nome

Esmaga em prensas de laje os golfos do nome
dir-se-ia um nome de larva ou sílaba azeitada
e o corpo está enrijado como Jesus a prumo
ser imponderável revestido de folhas brancas,

sob o arco da língua retesada os cascos surdos
esta boca imunda em lava aberta esta tribo
e o fogo nas mãos como soldas no centro do ar
o ritmo asfixiante do verbo o hálito sangrento,

toda a cegueira da sombra das liras espiando
ó bem amado nome diluído na refracção do eco.
João Rasteiro

Cartas II


Critica III

Luís Serrano
Os Cílios Maternos, de João Rasteiro - Luís Serrano
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Acaba João Rasteiro de publicar mais um livro de poesia, Os Cílios Maternos, desta vez com a etiqueta da Palimage; a capa deve a sua beleza a um acrílico sobre tela de Fernando Lemos.A obra vem acompanhada de um posfácio da autoria do escritor brasileiro Carlos Felipe Moisés que constitui uma leitura possível (e pedagógica, diria eu) desta obra. Mas outras (leituras) são possíveis e nisso reside grande parte do seu interesse.Se fizermos um rastreio das palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências não nos sobram dúvidas de que é, fundamentalmente, do corpo que aqui se fala e naturalmente dos sentidos e da sensualidade, corolário da relação masculino/feminino.Vejamos, pois, em primeiro lugar as palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências: artérias (1), boca(s) (8), carne (5), células (1), corpo (20), dedos (2), dentes (1), falange (1), garganta (1), língua(s) (2), músculo (2), pele (9),placenta (1), pulmões (4), rosto (2), sangue (4), sémen (2), tendões (3), veias (6), ventre (1), virilhas (3). Destas assumem especial relevância bocas, carne, pele, veias, vocábulos que nos remetem para um erotismo evidente.Das palavras ligadas ao que poderíamos chamar de os processos do corpo reteríamos cópula (2), fala (1), fluxo do sangue nas veias (1), germinam as crias (1), memória do corpo (1), olfacto (1) e respiração (3). São, pois, palavras ou conjuntos de palavras de sentido complementar às primeiras e também daqui se pode inferir a vertente erótica, quase obsessiva desta obra.Estou de acordo com o autor do posfácio quando refere o ímpeto fogoso, verdadeiro magma verbal [desta poesia]; já não entendo muito bem quando acrescenta: Pouco a ver, portanto, com a “escrita automática” ou o “ditado do inconsciente”, dos surrealistas, expediente com os quais o processo criador de João Rasteiro tem, ao menos à primeira leitura, forte afinidade […]. Afinal, tem a poesia de J. R. alguma coisa a ver ou não com o surrealismo? Para mim, é óbvio que tem. O próprio Carlos Felipe Moisés refere que o recurso ao insólito e às associações inusitadas comanda o fluxo ininterrupto de imagens […] (p. 45). E, de resto, qual é o poeta actual que pode, em consciência, dizer que não deve nada ao surrealismo? É preciso é ter consciência de que essa fase já passou, fez o seu tempo e deixou os seus frutos.Para além destes recursos de que se vale a poesia de João Rasteiro, refira-se ainda o emprego das palavras raras, tão do gosto dos simbolistas e do nosso Eugénio de Castro, em particular. Como exemplo, podem citar-se algumas palavras muito pouco comuns na linguagem quotidiana, quais sejam corla (p. 29), crísea (p. 25), gárgulas (p. 15) e lisérgicos (p. 26).Acrescente-se ainda a estes considerandos o emprego a p. 18 de uma sinestesia: o sabor do peso de um som inicial onde se podem detectar, porventura, algumas reminiscências do Carlos de Oliveira de Micropaisagem.Cílios, palavra que figura no título acrescida do adjectivo maternos, fornecem, na opinião de Carlos Felipe Moisés, a matriz da métaphore obsédante (Mauron).No meu modesto entendimento, cílios constitui o operador da purificação na sua qualidade de filtro e opõe-se, numa dialéctica da condição humana, ao apelo dos sentidos. O adjectivo nada mais faz do que reforçar esta acção de catarse subliminar, quer maternos se refira à mãe ou à terra ou à água, pois que é sempre uma alusão à receptiva feminilidade para citar uma vez mais o autor do posfácio.É um livro onde se assumem os contrários de uma forma que me parece óbvia. A este título, vejam-se os poemas da p. 13 ( Quando a floração do fogo dança / o verdadeiro sinal da água ecoa.), da p. 15 (Que o silêncio germine opaco / nas feridas cíclicas da noite / porque o sonho é o sonho da ausência.), este certamente um dos poemas mais belos da obra senão mesmo o mais bem conseguido, da p. 25 (É no fluxo negro de desertos acesos / que os corpos têm sonhos premonitórios / talvez esperando a cópula dos frutos.) e outros se poderiam citar.Diria a terminar, se algumas reservas se devessem apontar, que alguns poemas pecam talvez pelo facto do poeta não se ter eximido à explicitação demasiado frequente da comparativa como (14 vezes). Este emprego contraria o carácter elíptico que é tão próprio da linguagem poética.Aqui ou ali pode encontrar-se uma adjectivação de gosto duvidoso (placenta brilhante, por exemplo, que ainda por cima vai rimar com agonizante em rima cruzada, isto num livro onde se utiliza apenas o verso branco).Mas estas reservas (?) não são, de nenhum modo, muito significativas. Simplesmente, o autor destas linhas não ficaria de bem com a sua consciência se não apontasse aquilo que em seu entender é menor, até porque João Rasteiro poderá em obra futura corrigir tais pecadilhos.Os leitores ficam à espera porque esta obra tem já a maturidade que o futuro afinará.É, pelo menos essa, a minha convicção.
ARTES E LETRAS > Crítica Literária
O Primeiro de Janeiro - 2006