quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O BÚZIO de ISTAMBUL

O BÚZIO de ISTAMBUL, de João Rasteiro – Crítica de Luís Serrano (*)

A última obra de João Rasteiro aparece-nos sob o signo do Oriente através da cidade de Istambul (ver título) que salta de um verso de José Tolentino de Mendonça (ouvi a estranhos no Bazar de Istambul) e de um outro de Hart Crane (Ó rosa de Istambul – os sonhos tecem a rosa!).
Há ao longo do livro referências bíblicas, mais explícitas ou menos explícitas (Bagdad, Nazaré, Babilónia, torre de Babel, Istambul, mirra, incenso) e também referências a Herberto Helder, ele próprio um poeta marcado pela leitura da Bíblia. É óbvio que a linguagem barroca de João Rasteiro tem a ver com muitas leituras feitas, mas eu destacaria a de Herberto Hélder, cultivando o verso longo e os vocábulos pouco comuns (rares mots) que os simbolistas viriam a cultivarem.
A obra está dividida em três partes: O anjo abstracto, Amieiros que sangram e Tríptico da criação.
Falar da aldeia do Ameal onde nasceu é, para Rasteiro, falar do nascimento e da morte que são, naturalmente, os dois marcos que balizam a vida de qualquer homem.
O Ameal está presente em toda a obra, quer explicitamente, quer através dos microcosmos Sardoal e Rigueira, eles próprios referências topográficas integradas no Ameal.
Diria que é a segunda parte a mais importante, quer ao nível da mensagem que se pretende transmitir (os poetas pretendem sempre transmitir uma mensagem porque querem ser lidos, mesmo quando dizem o contrário), quer a nível dos processos utilizados. São praticamente todos ou quase todos “poemas em prosa”.
É uma extensa reflexão sobre a morte (e sobre a morte do pai, em particular, facto ocorrido quando o autor tinha apenas 31 anos de idade) e sobre o lugar que o viu nascer e onde a infância deixou marcas fundas na memória.
Logo nesta parte (Os amieiros que sangram) o poema da p. 47 inicia-se por um regresso à infância: Aprendi a regressar e todo o poema é escrito no presente do indicativo para nas últimas 3 linhas passar a pretérito imperfeito. São 3 linhas de grande significado: E a terra era viva, translúcida, e tinha um cheiro morno que entontecia. Porque era nela que eu frutificava, pungente.
As referências à morte do pai são comoventes mas sóbrias. Na p. 48 pode ler-se: Estamos em 1996, é Outubro, […] e eu à procura de meu pai […] e na p. 49 é ainda um poema sobre o pai, agora feito memória: O Inverno adquirira um rosto. O dele (do pai): E também ele encontrara um rosto. O seu próprio.
A obsessão da morte encontra-se em muitos poemas. Leia-se na p. 51: Um dia, também eu encontrarei a morte no meio dos amieiros. É curioso verificar que sempre a morte está ligada a um topos que neste caso é a povoação de nome Ameal (Amial com i como se escrevia ao tempo da infância do autor) nas proximidades de Coimbra. Uma síntese destas ligações é bem visível no poema da p. 52: Olho em volta: eu e o meu pai e com todas as memórias que se somam ao meu corpo, e que tu, e contigo todas as memórias, tu aldeia, em que descobri a forma dos fetos, o êxtase do tempo, até conseguir fazer soltar a primeira respiração, a respiração do lugar inicial, a respiração purificada dos animais sob os amieiros.
No poema da p. 53, o autor volta ao tema: […] quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, […] E nem sequer me despedi, pai.
E é entre a morte e os amieiros, símbolo de uma ligação à terra, que a obra se vai construindo; nela não cabe apenas a razão mas também a emoção, a lágrima discreta que o tempo ainda não apagou. Diz o poeta na p. 55: Os amieiros chegam como um nome mágico à boca do rio, sempre um jardim de amieiros contra a paixão da água.
Há, ao longo do livro, imagens muito belas que mostram o bom gosto do poeta, "a qualidade da fábrica". Por exemplo, da p. 57 retiro as últimas 5 linhas: O céu é um pássaro descomunal envolto em chamas sobre as vozes dos mortos, sobre os livros onde se aprisiona a formosura das palavras, como se fosse possível guardar a transparência do júbilo.
E a morte é assim, na visão do poeta, não desactivada mas, de algum modo, contrariada ou superada pela força das palavras. Eis aqui uma razão muito forte para que João Rasteiro continue a escrever os seus poemas que passam a ser nossos também.
A morte circula por aqui, como reiteradamente se disse, entre um Anjo abstracto e um Tríptico da criação onde se integra o poema O território dos anjos. Os anjos são agora de carne e osso e estão contaminados por tudo aquilo que transforma os homens: o amor, o ódio, o crime.
Deixa-se aqui apenas uma sugestão para futura obra: uma redução drástica na frequência de comparações explícitas e de possessivos. Uma obra com a qualidade desta merece uma atenção mais detalhada quanto ao emprego destas bengalas.
A obra vem prefaciada (?) por um poema de Casimiro de Brito intitulado: Quem amou ainda ama.
É uma edição de Palimage, 2008, ostentando a capa uma imagem de Rogério Oliveira.
Aos que se interessam pelo conhecimento dos novos caminhos da poesia portuguesa, recomenda-se a sua leitura.
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(*) Poeta e ensaísta.