quarta-feira, 26 de maio de 2010

A-POÉTICA

A poesia como guerrilha, ou formas fundamentais de fazer política, através da anti-poética:
Se os "media" transmitem as imagens como sendo neutras, apesar de essa pseudo-neutralidade em si mesmo, já ser uma tomada de posição, na poesia e/ou literatura, não há, ou não deveria haver, neutralidade na ideologia. Fingir que se é neutro ou não militante, "é uma forma, por demais recorrente, de mistificação e má fé", que naturalmente, apenas pretende reforçar a autoridade das nossas convicções. A poesia deverá ser sempre a aversão à conformidade, na procura de uma dinâmica formal (em permanente processo e imediata fuga à regra), de modo que adequando e adequando-nos às diferenças, possamos começar a respirar mais profundamente. As formas de representação cultural, na sua diversidade, são as que começam por aceitar o modelo (formal) de representação da cultura dominante, daí que a poesia deverá fazer com que "seja possível ouvir sons que, de outro modo, nunca seriam articulados". Na perspectiva de Charles Bernstein (1), a linguagem poética tem de ter acção, tem de intervir, sendo que se paga um alto preço por se estar mais disposto a representar, do que a actuar, daí ser natural que o que a poesia trabalha é mais importante do que o que a poesia diz. É nesse contexto que se deverá entender o poema do poeta norte-americano, Michael Franco (2), com o irónico título,"Ensaio”:

cada raiz enterrada entoa
"percurso"
cada vereda tomada, de igual modo uma decisão de movimento
e na acção
segue propõe ou
sufoca:

"está morto"
Para muitos o espectro de cada palavra o ser
De mais a tolerar a
um corpo
de poesia.

Neste processo intransponível de globalização, em que a cultura americana determina os modelos culturais que se tornam dominantes no mundo Ocidental, Bernstein realça a questão do poder da linguagem, preconizando que a poesia terá que ir ao encontro do que a ideologia coloca fora da linguagem (essencialmente o que está reprovado pela sociedade), tentando encontrar formas outras, como discurso epistemológico, que nos liberta ou arremessa para um sopro imaginário. Para isso, a poesia terá que abrir fendas, numa espécie de guerrilha (até porque não haverá poesia fora da ideologia), o importante será escrever poesia, numa lógica aberta do poema, que incluirá toda a multiplicidade de valores e toda a pluralidade da linguagem.
Ironicamente, Bernstein (3) espera que "a poesia deve ser pelo menos tão interessante como a televisão e bastante mais surpreendente", já que a televisão mostra uma imagem disreal do real e a poesia terá que mostrar o real do disreal”. A poesia como guerrilha, como inovação e diversidade, como aceitação de diferenças e aprendendo técnicas e instrumentos alternativos, para entender e mostrar a realidade, como forma de alterar os mapas do senso comum, esperando que esse texto poético seja reflexo de uma relação intrínseca da poesia com a comunidade e proceda de forma a que as transformações se materializem corpus alternativo, um corpus metamorfoseador, um corpus outro. É nesta dialéctica e/ou confronto da poesia e de ideologia, que é preciso agir, sem retrocessos ou temores, mesmo que o mundo e a poesia, seja um permanente jogo de estratégias, uma vez que não existem padrões comuns e tudo depende do contexto. A poeta canadiana, Nicole Brossard (4) afirma:

de manhã devemos transcrever
no computador ser comportada
o mundo mudou
cada um agarra a sua faca
à altura dos olhos
comendo frutos
em frente ao ecrã
é inútil gritar
o sinal repete-se
a paisagem muda
outras metáforas
a guerra branqueia os ossos
é claro que existe o sujeito
a intrigante sensação de viver
no meio de uma multidão de palavras
densidade muito urbana
de histórias e secreções

É de realçar, um factor importantíssimo, e que é o facto de o poeta, independentemente do "autor", também ser um ser humano, logo, ter o direito, ou diria até, o dever, de exprimir os seus amores, ódios, simpatias, antipatias, crenças, sonhos, imaginação, intuição e inclusive a sua razão mais íntima. Na actualidade, há uma gustação negativa, um certo desprestigio pela poesia, dita "politica" ou social, mas, o que está em causa é a capacidade de tratar determinado tema, pois pode-se fazer boa poesia com temas políticos e/ou sociais e má poesia com temas considerados "poéticos" ou "líricos". A poesia deverá ter ideologia, o que não pressupõe necessariamente ser ideológica.
Hoje em dia, ela não se pode demarcar mais da realidade, terá que ser uma "voz pública" ainda que em processo de "ventrícolismo", de forma que a poesia terá que entrar "como interacção, conversação e provocação” (mas, desejando a reciprocidade).
Como expõe Flo Amber (5), "se um cisne cantasse, não saberíamos da insistência com que diria". Mas nós não somos cisnes, pelo menos a maioria de nós não é – e não temos por isso qualquer desculpa.
O poeta Herberto Helder assevera (6):
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
(…)
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Estamos de acordo, que não existem padrões de estética e cultura universal, daí, ser essencial que todos nós consigamos ultrapassar a ideia de que podemos todos falar uns com os outros, a ideia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia". Tal, é uma utopia, uma vez que, só será possível ouvirmo-nos uns aos outros, quando todos aceitar-mos, este indesmentível facto. Para isso é necessário trabalhar numa pequena escala, mas actuando em vez de representar, numa procura de inovações formais que desafiem os padrões dominantes, por vezes suportadas em pequenos detalhes que fazem a diferença, uma vez que o importante é, sem dúvida, agir e trabalhar o que se diz, numa permanente ruptura e não em meras substituições, incessantemente, através de um modelo agonista de linguagem.
É preciso sentirmo-nos estrangeiros e não donos da nossa própria linguagem, a poesia terá que estilhaçar as formas de representação da sociedade, colocando-se para além da própria marginalização, num processo permanente de ruptura com as ideologias, inclusivamente, ao nível das ideologias poéticas e literárias.
Como afirma também Bernstein (7), "as convenções, ao serem provisórias em vez de eternas, foram feitas para serem quebradas", e a poesia deverá começar pela ruptura das próprias convenções da escrita, de forma a penetrar, sobretudo, a invadir a política da linguagem. Refere ainda Bernstein, que é necessário fugir a todas as formas reconhecíveis de linguagem, principalmente em termos de sintaxe, daí ironizar muitas vezes com a própria forma ensaística.
Alega o poeta norte-americano Michael Palmer (8):

reflectir, claro, sua mão sobre o papel
é o exercício mais baixo
que permite seguir
uma redução geográfica
eles esperavam ser percebidos


O processo de ruptura criado pela rejeição dos valores instituídos, contribuirá forçosamente, para uma necessária mudança de atitudes e do cânone instituído, daí a própria inovação poder ser pensada, em termos sociais, e não apenas ao nível estrutural, ou seja, como defende Bernstein (9), – "a ruptura do discurso patriarcal, pode ler-se tanto em termos de política, racial e sexual, como em termos de inovação estrutural no abstracto". A poesia terá cada vez mais de ser uma "voz" em ebulição, que actue fortemente como se fosse sempre uma oportunidade única.
O poeta norte-americano Robert Duncan (10), no poema "Raízes e Ramos" afirma:

Só existe o tempo único.
Só existe o Deus único.
Só existe a promessa única,
e da sua chama
e das margens da página todos se incendeiam.
Só existe a página única,
o resto fica,
em cinzas. Só existem
o continente único, o mar único –
entrando pelas fendas, batendo, rebentando
correndo de lado a lado.

Mas se na "Poética" de Aristóteles, se defende um saber feito de fazer, baseado na revalorização do concreto, procurando imitar através do real o que ainda não se viu, em contínua procura da uma reedificação do corpo poético, na A-Poética, Bernstein (11), sabendo que as formas convencionais de representação, condicionam a própria representação de utopia, ou seja, não é possível pensar o mundo fora da sociedade e as suas formas de representação. Pois só através do objectivo patético e cómico, tal poderá ser possível (valorizando o absurdo como ruptura). Assim, num feroz método de tudo amalgamar, visando, por vezes de forma obsessiva, o objectivo de destruir a centralidade da narrativa, da nossa própria narrativa dominante, num processo de "estar entre", entre todos os vectores (do qual todos somos parte integrante), determinará então, sempre, um processo de ruptura e não transformando apenas, através da produção da imitação, como preconiza de forma substantiva, a "Poética" de Aristóteles. Veja-se o poema do poeta Brasileiro Wilmar Silva, do livro “anu” (12):

riomarnoiteinteriordasgraiz
euanuavesoubichonasenda
(…)
ninchodgravetofelndiaviés
véundavausíndigodobrasil
triçaentrioandorinhasanu

Mas, este processo terá que ser permanente (o mito sobre o mito), o novo mito será convenção, para poder ser também estilhaçada por outro mito que será convenção, que será convenção e estilhaçada, num ciclo infinito. Afirma Bernstein (13), que "a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar – de calcular – de pensar figurativamente, tropicalmente", reforça ele. E se de alguma forma, tudo é relativo, é no entanto necessário "tomar uma posição em função de", porque não é relativo, como sinónimo de tanto faz, daí o interesse pela poética e pela forma poética, como "forma" fundamental de fazer político e transformação do mundo. A “transformação eminente”, como refere Herberto Helder, pois a escrita da metamorfose é a caligrafia em que a acto do poeta, transforma o próprio acto de transformar.
Charles Bernstein, no seu livro “Histórias de Guerra” (14), afirma:

a política num poema tem a ver
com o como ele penetra o mundo
(…)
a guerra é um poema que está aflito com sua sombra
e furioso em seu curso.

Em sua “Geopoesis das Margens”, a poesia buscando “os sentidos outros” em ininterrupta e apocalíptica guerrilha, contra a “conspiração do silêncio”, como refere Graça Capinha, procurando o desequilíbrio nas múltiplas vozes que explodem na sua desmesurada e profunda diversidade. A poesia como um maravilhoso oceano agonista.
São urgentes soluções, e neste percurso é crucial activar o potencial poético para toda a gente, não interessando a quantidade ou mesmo serem lidos, como afirma Bernstein, a árvore não necessita obrigatoriamente de ter alguém debaixo dos ramos à sombra, mas se precisarem, a sombra está lá. Sem hesitação, Bernstein (15), deseja que "o barulho social seja um som que a poesia pode não só fazer, como também ecoar e ressoar" de forma avassaladora e perturbadora. A poesia, como dialéctica multi-direcionada e multi-vectorial, até porque o essencial é "agarrar" os sons que nós próprios ouvimos. Até porque como refere, “é sempre a margem que define o centro”.
Citando o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos (16):

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
(...)
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Notas:

(1) (3) (4) (7) (9) (11) (13) (15): Revista Crítica de Ciências Sociais nº47, "Os poetas e o social", 1997,Coimbra·
(2): Poesia do Mundo 2; Org. Maria Irene Ramalho, Poesia Afrontamento, 1998,
Stª Maria da Feira.
(5): Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro; 2º Ed., 2001, Assírio & Alvim, Lisboa

(6): Helder, Herberto; "Poesia Toda", Assírio & Alvim, Lisboa, 1981.(8): Bonvicino, Régis;Palmer,Michael;"Cadenciando-um-Ning,Um Samba Para o Outro",1ºEd.,2001,Ateliê Editorial, S.Paulo-Brasil (10): Helder, Herberto;"Poesia Toda", 1ºEd.,Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.

(12): Silva, Wilmar; “anu”, Confraria do Vento, Brasil, 2008

(14) Bernstein, Charles; Histórias de Guerra, Martins Fontes, Brasil, 2008.(16): Vasconcelos, Mário Cesariny de; "Pena Capital”, 3º Edição, Assírio&Alvim,
Lisboa, 2001

João Rasteiro

domingo, 2 de maio de 2010

O tempo da Poesia

O tempo no tempo do poema
(Base da intervenção de João Rasteiro na IV Bienal de Poesia de Silves)

“ (…) Correr a mão / pelo corpo que tens em temposquedos, / deixá-la ir pelos agostos fartos / pelas horas deceifas e de verão. / Deixar que a tua pele me guie os dedos /para chegar aos olhos e fechar-tos”
Pedro Tamen

Se de alguma forma podemos afirmar ser “função” da poesia, se é que deverá ter alguma função, entre outras coisas, a produção do real ou quotidiano, a configuração da instigação ou persuasão e encantamento, a ininterrupta adequação entre meios e fins, um projecto cultural ou estético e ético, etc. (embora todos estes parâmetros se possam valorizar mais ou menos em função do contexto) e, ainda que seja recorrente a afirmação bastante conhecida de Shelley na sua “Defesa da Poesia” (1821): Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, hoje, a criação poética cada vez mais se vê (ou deveria ver) reduzida àquilo que Hugo Friedrich chama "dissonâncias", "anormalidades" e "categorias negativas".
O poeta norte-americano Robert Creeley tem um poema que coopera na configuração do papel da poesia hoje: Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí, está o lugar da poesia e do poeta: bosque / mundo "onde ninguém vai”. Pressões e tensões em ebulição. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao "cultivar" tensões, distancia a poesia do espaço comum das realidades deste mundo.
Pedro Tamen assevera: Suspendo a mão entre o A e o B, / entre a minha vida e a vida que andará / dentro da minha vida.
A vida dentro da vida, o tempo dentro do poema, o tempo que revela quase sempre a visão particular do mundo, ou dos mundos do poeta e a sua atitude perante a problemática que envolve o ser humano. O tempo no tempo do poema é espaço aberto, no qual o poeta concretiza a sua visão da vida e a imagem do espaço que o alimenta e destrói, o tempo onde se reassume a função originária de baptizar os signos do mundo. Como afirmou Roman Ingarden, em A obra de arte literária, esta, não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exactamente na peculiaridade dos estratos singulares. Os estratos são heterogéneos, combinam-se entre si, têm características particulares, garantindo a unidade do todo. E é no tempo do poema, que o poeta enraizado em seus peculiares e singulares tentáculos, intenta e arrisca fazer uma fusão entre o plano da vida coabitada e o plano da vida criada, num tempo outro, num sonho outro. A caverna, onde a poesia e a sílaba acesa se direccionam para o sentido profético do “verbo-milagre”, que tem o poder de acarretar à vida, ao explosivo campo da linguagem, qualidades metafísicas da morte e, ao mesmo tempo, revelá-las em seu esplendor de vida. Um tempo sem alicerces e sem inquietude quanto à falta de alicerces, pois talvez isto seja o que a poesia era antes de a começarmos a metamorfosear. O poeta Herberto Helder profere apocalipticamente: Um poema cresce inseguramente / na confusão da carne, / (…) E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. / E já nenhum poder destrói o poema. / (…) — Em baixo o instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério. / — E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
O poema e a poesia deverão imperiosamente criar o seu próprio tempo, pois se não o fizerem, não estaremos perante poesia, mas perante uma outra qualquer forma ou estrutura de linguagem. O poema e a poesia fugindo do tempo linear em que assenta a força motriz do mundo, ou dos “mundos” (que aparentemente representam o real, mesmo se estivermos ante a denominada “poesia do quotidiano”) impondo de forma absoluta o seu próprio mágico e doloroso labirinto.
Profere T. S. Elliot, nesse fabuloso livro que se chama “Quatro Quartetos”: Ou seja, que o fim precede o princípio / E que o fim e o princípio sempre estiveram lá / Antes do princípio e depois do fim.“
Ou seja”, não deverão poesia e poema, abertos e subtis em seu permanente jogo de contrários, nessa imprevisível dialéctica entre espaço e tempo (o tempo fora do tempo e dos tempos) possibilitar as cúpulas para uma leitura outra (porque um tempo outro) do “mundo” ou dos “mundos”, em que quase sempre julgamos ilusoriamente ser deuses capazes do inefável, capazes de navegar o tempo inexplicável da intemporalidade?
O tempo da poesia, o tempo do poema, o tempo funcionando sempre, em cada momento único, como o descentramento da fortuita realidade em seu e nosso infinito labirinto.
Na eterna errância do poeta em direcção à morte, o que mais importará será a viagem, o trajecto, o longo trilho da memória sob o orvalho, o tempo dentro do tempo – o verbo corpo de linguagem. Infinita. Sempre aberta à imaginação, à sagrada ilusão da sílaba, o caminho outro, a consciência de uma particular visão do mundo derivado de um tempo próprio e único, como se a criação poética pudesse ser a brutal fonte da lucidez que brota da ilusão justificada – a verdade, essa ficará para os deuses.
Pois mesmo em poetas como, Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rimbaud, Withman, Baudelaire, F. Pessoa, Elliot, Pound, Yeats, Lorca, H. Hélder e outros, o tempo da poesia é apenas a concentração absoluta e pura da vida e da morte em sua trágica e divina ilusão, o carnal corpo da linguagem sempre exposto à ilusão do tempo e à absurda alucinação da metáfora. A peregrinação. A viagem com fim marcado.
Samuel Beckett não tem dúvidas quando pronuncia: Que faria eu sem este mundo sem rosto sem questões / Quando o ser só dura um instante onde cada instante / Se deita sobre o vazio dentro do esquecimento de ter sido.
O sentido e a rota inexorável do futuro estará sempre inscrita no que fazemos no presente. E é por isso, que é essencial fabricar-se uma perspectiva em que o tempo do poema terá que ser o centro em que se gerará a ideia de um tempo outro. Um tempo em que não exista tempo fora dos desejos dos sonhos e da memória. Onde talvez não exista sequer tempo fora dos signos que se sobrepõem aos sonhos e utopia que os invocam. Mas terá que ser forçosamente o tempo do poema, da poesia, a contradizer em seu habitat, em seu sopro de tempo, tal condição. É esse tempo que se apelidará de “tempo da poesia”. O tempo em que como diz Fernando Pessoa: Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas… / Que já têm a forma do nosso corpo…/ E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre / aos mesmos lugares.
O sentimento de um tempo, o tempo do canto feroz, onde a cilada e a cólera, a espera e o desespero, nascem dessa perspectiva de campo de fantasia, do lugar outro – a poesia!
Logo, não admira, que essa busca insana de imortalidade, de intemporalidade, nos iluda, mais ou menos consoante a dialéctica entre o espaço e o tempo, dependendo da forma com que neles nos representamos, tendo em conta a percepção da finita existência do verbo e da memória. Apesar da permanente ilusão de permanência no tempo do poema.
Pois é lá, na beleza do caos, no tudo que é nada, que a eternidade poderá iludir-se que acontece. Mas na verdade, o tempo do poema terá que continuar a ser o leito sagrado onde o poeta tecerá a urdidura que permitirá sonhar um mundo outro, um lugar outro, fabricando o linho ou a mortalha que concederá o sentimento continuado de ser omnipotente. E será esta urdidura no tempo do poema, que sustentará o leito mortífero do tempo. A poesia em sua harmoniosa e fatídica plenitude. A morte como alimento de vida. A poesia como língua-milagre em seu espaço aberto, capaz de transfigurar e metamorfosear a realidade e veracidade do homem, pois ela, como referiu Octávio Paz, é um “tempo revelado”, ou seja, a “enigmática transparência” do sopro incandescente. Pois, Não será o medo da loucura / que nos forçará a pôr a meia-haste / a bandeira da imaginação – André Breton,”Primeiro Manifesto Surrealista”, uma vez que como canta Pedro Tamen: A minha desforra são palavras / Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará.
João Rasteiro, Silves, 25/04/2010