sábado, 2 de julho de 2011

"Tão importante que nem coisa é"

Discurso de agradecimento no dia 21 de Março de 2011 [Dia Mundial da Poesia] na Guarda, na Biblioteca Eduardo Lourenço, Sala Tempo e Poesia, na sessão Solene de Entrega do "Prémio Literário Manuel António Pina" ao meu livro "A Divina Pestilência".
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Ex.mo Sr. Presidente da Câmara Municipal da Guarda  
Poeta Manuel António Pina
Membros do júri
Poetas presentes
Minhas Senhoras e meus Senhores

Em primeiro lugar e acima de tudo, quero começar por exteriorizar a minha profunda alegria ao receber o Prémio Literário Manuel António Pina. Alegria pelo prémio em si e alegria por ter sido agraciado por esta Edilidade, pois trata-se de uma Edilidade que representa uma região onde pontuam nomes como Rui de Pina, Nuno de Montemor, Virgílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Américo Rodrigues e Manuel António Pina, só para citar algumas figuras proeminentes da literatura e da cultura portuguesas.

Como podem imaginar, a atribuição do Prémio Literário Manuel António Pina faz com que me sinta extremamente honrado e reconhecido. Honrado não só pelo nome que o prémio ostenta e pelos seus membros do júri, mas também por se tratar de uma 1º Edição em que, tal como foi realçado pelo júri no comunicado de atribuição do prémio, a quantidade e qualidade das obras a concurso sublinham plenamente o reconhecimento literário de Manuel António Pina – hoje, sem dúvida, um dos mais importantes escritores portugueses, na sua criativa abrangência literária, que vai do teatro às crónicas ou da poesia à literatura infantil. Faço minhas as palavras de Eduardo Prado Coelho, no momento em que a Assírio & Alvim publicava a Poesia Reunida de Manuel António Pina: estamos em condições de poder afirmar que nos encontramos perante um dos grandes nomes da poesia portuguesa actual. Uma extrema delicadeza pessoal, uma discrição obsessiva, uma cultura ziguezagueante e desconcertante, mas sempre subtil e envolvente, um sentido profundo da complexidade da literatura, e também, sobretudo, da complexidade da vida, (…) uma obra maior da literatura portuguesa”.

Sim, só posso sentir-me honrado e agradecido – em muitos sentidos – pela atribuição deste prémio, para mais em sua primeira edição.

Podemos interrogar-nos – e muitos se interrogam – acerca da utilidade da poesia. Hoje, neste Dia Mundial da Poesia, e depois das mais recentes catástrofes das últimas semanas, acredito, mais do que nunca, que o papel social e político da poesia continua tão imprescindível como no momento do seu surgimento no ritual colectivo de que a comunidade, então como hoje, necessitava para sobreviver: para passar o conhecimento e reinventar o mundo.


Atrevo-me a tomar emprestado o texto de José Saramago ao receber o Nobel, para responder à permanente questionação acerca da legitimidade e/ou utilidade desta arte: não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos.

Perante tais factos, que cada vez mais sentimos na carne, em todo o mundo e em especial aqui, neste lugar chamado Portugal, apetece mais uma vez perguntar e realçar: não é o poeta mais necessário do que nunca?

Todos sabemos que com a poesia não se mata a fome, que não se compra pão com palavras, nem se curam os males da humanidade ou se repõe a dignidade do ser humano. No entanto, se a proficuidade de uma realidade se analisar pela sua capacidade – de alguma forma inexplicável nos termos daqueles que perguntam – a sua capacidade, repito, de nos transformar mais em verdadeiros seres humanos, de nos facilitar crescer enquanto indivíduos, de conceder a possibilidade da nossa construção como criaturas livres, então, talvez possamos afirmar que a poesia se libertou também da sua condição de resíduo improfícuo que obstinadamente porfia em acumular-se nas prateleiras doiradas e brilhantes da literatura, da cultura e do mundo, ou dos mundos, em que vivemos, mas onde, por vezes, parecemos vegetar em meio do delírio consumista.

Para isso, cada vez mais, o estranhamento, as rupturas e o ininterrupto poiésis do verbo terão de desmentir a afirmação de Jean Cocteau, quando afirma que A poesia é uma religião sem esperança. A poesia é a prova provada da razoabilidade da esperança – já que é a poesia que nos permite reinventar o mundo, inaugurar novos espaços da existência humana futura – que não poderemos decerto, aqui, hoje, ainda sequer conceber. 

Quero realçar o facto de essa esperança, essa ruptura e esse estranhamento estarem hoje aqui também de uma outra forma: com a atribuição do prémio a este desconhecido poeta de Coimbra – um poeta fora do centro (geográfico, académico e editorial) da poesia da cultura oficial portuguesa.

Decerto o encorajamento do projecto a que estou ligado desde quase o seu início, há cerca de 14 anos, a Oficina de Poesia da FLUC (aqui representada pela sua coordenadora e fundadora, Prof. Dra. Graça Capinha) foi importante. Mesmo que após cerca de 14 anos de existência, 20 números da sua revista (onde já publicaram inéditos nomes como António Ramos Rosa, Ana Hatherly, Casimiro de Brito, Ana Luísa Amaral ou Adília Lopes, só para citar alguns nomes portugueses), mesmo que apesar de centenas de actividades pela “paisagem”, ou seja, fora de Lisboa e Porto (quer seja em leituras públicas, workshops, encontros de poetas, etc.), ainda hoje, este projecto não tenha qualquer visibilidade no centro literário de Portugal.

Mas reconhecimento é outra coisa e esse tem vindo dos locais e pessoas com quem se tem interagido ao longo deste percurso, uma vez que está longe das muralhas que guardam o Santo Graal do verbo canónico português – um percurso que, tal como no caso de muitos outros poetas portugueses, tem quase sempre ido do local ao transnacional, sem passar pelo nacional. Muitas vezes, e sobretudo, nas comunidades mais remotas onde tenho (com os meus colegas da Oficina de Poesia, ao longo destes já quase 14 anos) levado a minha voz poética; nas escolas, onde crianças descobrem o espanto do poema (e a experiência de Belgais nunca a poderei esquecer); nos bares e cafés onde alguém, distraído, repara/tropeça no som do poema e inaugura outra visão do mundo – mas também, muitas vezes, nos diálogos com poetas de outros países e outras línguas (e muitas vezes de outras culturas), na abertura das suas publicações ao meu trabalho e no seu reconhecimento dele através da tradução e pequenos prémios.

Esse tem sido também o meu percurso e, por isso, reafirmo uma vez mais o meu obrigado à Câmara Municipal da Guarda, mas sobretudo ao júri, pela escolha: não por escolherem uma obra minha (o que agradeço profundamente), mas sobretudo por escolherem o texto pelo texto, sem qualquer perturbação de ventos emanados de obscuridade poética lusíada.

Para que serve então a poesia? Ah, a poesia! Pois ela servirá sempre para as múltiplas utopias do ser humano, já que Os poemas virão inclusos// quando afluir o orvalho,// chegarão antes do pecado.

Como alguém já referiu, a poesia servirá para o mesmo fim que serve uma vaca no meio do passeio de uma complexa e agitada cidade: para alterar o percurso do nosso caminho, para interromper um hábito de estar calado, para provocar um estranhamento, para nos fazer ousar pensar, para nos resgatar do inferno que é viver todos os segundos sem um único assombro ou sonho, para nos livrar de andarmos sem escutar um único som verdadeiramente mágico – ou seja, para que seja possível ainda abrirmos os olhos e o coração, sem ter medo de viver escutando o ainda inconcebível. Se, ainda assim, se insistir em declarar que a poesia não serve para nada, só poderei contrapor o facto de que quase sempre é o nada, em sua extrema integridade, que nos dá o verdadeiro sentido da existência.

Como dizia Jorge de Sena: a poesia é a coisa mais importante do mundo, tão importante que nem coisa é. Obrigado.                      
                                                                      João Rasteiro

A Divina Pestilência




E se a razão em ti não for escassa,

   Verás que, enquanto a um vai por um lado,
  Ao outro pelo oposto o sol perpassa.

 Dante Alighieri  A Divina Comédia

Celio


1.

As aves já ressequiram.
Não haverá como fugir
aos olhos nus de Outono!

2.

Ambiciono o relâmpago nu.
Só o silêncio acorda a sílaba
e a desperta para a pestilência.

3.

O que for escrito do hálito
será cumprido – a dilecção
é a sua extensão mais pura.

4.

Quando o cio desmembrar
 as fábulas sobre os cortiços,
 entranharei a terra de paixão?

5.

Na efervescência das crias
as palavras como invasoras.
A crueldade como bálsamo.

6.

A matança é uma inferência,
nunca a criação permanecerá
 em sua aparente invisibilidade.

7.

Em vulcão de lava o verbo
 procura florir uma ímpar flor:
desabando inteiro sob a língua!
                      João Rasteiro

domingo, 6 de fevereiro de 2011

DIACRÍTICO



PREFÁCIO 

REDUZIR AO HUMANO O DIVINO
  
     Já o sabíamos: a poesia é, por definição, um acto criativo, e isso mesmo nos assegura o substantivo grego poiesis, que ao verbo poiein – "fazer", "criar" – foi buscar a raiz e a substância. É de criação que fala – que trata – o poema Diacrítico, de João Rasteiro. A diversos níveis, aliás. Como quando, por exemplo, ex contrario do que ensinam as gramáticas, o discurso começa com um ponto final, isto é, antes e não depois de encerrado o período. Como se, por desnecessário ou inútil, algo tivesse sido elidido, rasurado na página. Ou como se algo estivesse subentendido e o seu entendimento fosse confiado à sensibilidade e inteligência do leitor. Como suplemento ou, antes, como suprimento. Criação, também, pelas metamorfoses operadas no tecido verbal que subjaz à construção do poema. Criação, ainda, pelo uso alargado da metáfora e, sobretudo, da elipse, figura através da qual se engendram os desvios e as operações semânticas que conferem ao texto o seu estatuto de obra literária.

            O poema, cujo título remete para uma ordem de natureza gramatical ou simplesmente linguística (os diacríticos, ensinam os dicionários, são sinais distintivos do timbre de certas vogais), divide-se em duas partes, cada uma delas subdividida em igual número de capítulos que funcionam como estrofes e valem como segmentos dum macrotexto cujo sentido se vai, dir-se-á, organizando e esclarecendo por si mesmo. Empurrada por um vento que sopra do deserto, a linguagem carrega consigo algumas pétalas que vai deixando na página em branco. Portadoras dum sentido originário, genesíaco, as palavras abrem sulcos num terreno onde o significado se oferece pleno de potencialidades e sugestões, carimbando de decantada expressão o corpo do poema. Tudo, aqui, é alusão. Tudo é profecia, oráculo, metamorfose. Tudo é, também, delírio. A linguagem é, como se lê no capítulo XVII da segunda secção, a "das vísceras condenadas à ilusão do verbo". Daí, talvez, o "surreal canto" para o qual somos convocados no segmento XIII da segunda secção, "A ressurreição das crias", ou aquele "deslumbrante espaço irracional" a que nos transporta o capítulo XVI da mesma secção. Espaço onde o deus sob vários modos e disfarces convocado para a cena se escreve com minúscula – outra forma de ao humano reduzir o divino, que é, parece-me, o escopo de toda a arte.

                                        Vila Nova de Gaia, 21 de Agosto de 2010

                                                            Albano Martins
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VI
.e por amor liberalizou-se o crime e o sacrifício das fêmeas em seu útero. seguiram-se dias de bárbaras festas onde os machos dançaram o êxtase das bocas. os loucos saboreiam as primaveras eivados de lua cheia. desnudos estiraram tições em fogo sobre as fêmeas para consolarem as exigências da carne. após as orgias aguardaram mais crias junto ao coração onde ocultamente a divina criação se digladia. e a seguir surgiram todos os outros seres inimigos dos filhos de deus. todos eles fecundados à sua imagem no altar do caos. a terra tinha então sido assestada pelos frutos cognitivos. os escolhidos foram amparados pelo arcanjo de marfim fluindo como rosas de feroz plenitude. que se reproduzam na noite da sua castidade e transitem nomes de inevitável perplexidade. que apazigúem os sonhos da argila. debaixo do núcleo venerável das oliveiras uma serpente glauca adormeceu de cansaço.


 VIII
.a arte mais sublime de trespassar a morte é descansar num nevoeiro a arder de sangue. e mastigar a ferocidade das abismadas paisagens com a zoologia aberta do amor. na agonia da pura inocência. olhar o gume da lâmina prateada e amá-la exalando a sua boca atulhada em espaço lírico. no ventre suculento das algas. a renúncia do torpor é apenas a entrega incólume da candura e da vulva viva porque nos incutimos erectos. o fingimento que evoca a mulher sufocada nos ganchos quando o poeta faz de homem sábio. a magnólia cheirando a incesto nas palavras faustosas. cada golpe luminoso é a acutilante  pujança das orquídeas negras do nosso próprio eco. a exígua morte.

XIV
.tal como os fungos dos poços de Jerusalém a memória sagrada das tábuas  é uma crisálida indecisa. aquela que se perdeu para sempre no fundo inóspito do próprio ventre de bunho. e parte larva parte meretriz chegaram os novos seres para talhar as cidades em metálicos e encorpados pulmões de cobre. alguns homens que já só se arrastam conforme as ofídias que percorrem as cisternas em noites de lua cheia. o violento delírio de se verem reflectidos nos olhos da água. sob o nenúfar as suas escamas repousarão desinquietas pela última miragem. a outra face do pai que tecia argênteas teias de melancolia. é preciso recordar as prefigurações das trevas para se acolherem as metamorfoses. a benévola carícia. a ressurreição hodierna das crias. o eco colorido.


XVII
.as crias já não sobrevivem sob a voragem do sol. bendita a luz dos astros que fulmina a paixão curvilínea das camélias brancas. nas cidades só o mármore e as negras aves. e na linha sísmica da cidadela a linguagem do delíquio dispersa o olfacto de néon entre presa e predador. a incisiva mecânica dos seres sem voz. criador e criatura. homem e deus. o infindo eco do desvario. o eterno diacrítico da ilusão. a deflagração do corpo. pojo


                                            João Rasteiro

                                                             2010