domingo, 2 de maio de 2010

O tempo da Poesia

O tempo no tempo do poema
(Base da intervenção de João Rasteiro na IV Bienal de Poesia de Silves)

“ (…) Correr a mão / pelo corpo que tens em temposquedos, / deixá-la ir pelos agostos fartos / pelas horas deceifas e de verão. / Deixar que a tua pele me guie os dedos /para chegar aos olhos e fechar-tos”
Pedro Tamen

Se de alguma forma podemos afirmar ser “função” da poesia, se é que deverá ter alguma função, entre outras coisas, a produção do real ou quotidiano, a configuração da instigação ou persuasão e encantamento, a ininterrupta adequação entre meios e fins, um projecto cultural ou estético e ético, etc. (embora todos estes parâmetros se possam valorizar mais ou menos em função do contexto) e, ainda que seja recorrente a afirmação bastante conhecida de Shelley na sua “Defesa da Poesia” (1821): Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, hoje, a criação poética cada vez mais se vê (ou deveria ver) reduzida àquilo que Hugo Friedrich chama "dissonâncias", "anormalidades" e "categorias negativas".
O poeta norte-americano Robert Creeley tem um poema que coopera na configuração do papel da poesia hoje: Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí, está o lugar da poesia e do poeta: bosque / mundo "onde ninguém vai”. Pressões e tensões em ebulição. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao "cultivar" tensões, distancia a poesia do espaço comum das realidades deste mundo.
Pedro Tamen assevera: Suspendo a mão entre o A e o B, / entre a minha vida e a vida que andará / dentro da minha vida.
A vida dentro da vida, o tempo dentro do poema, o tempo que revela quase sempre a visão particular do mundo, ou dos mundos do poeta e a sua atitude perante a problemática que envolve o ser humano. O tempo no tempo do poema é espaço aberto, no qual o poeta concretiza a sua visão da vida e a imagem do espaço que o alimenta e destrói, o tempo onde se reassume a função originária de baptizar os signos do mundo. Como afirmou Roman Ingarden, em A obra de arte literária, esta, não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exactamente na peculiaridade dos estratos singulares. Os estratos são heterogéneos, combinam-se entre si, têm características particulares, garantindo a unidade do todo. E é no tempo do poema, que o poeta enraizado em seus peculiares e singulares tentáculos, intenta e arrisca fazer uma fusão entre o plano da vida coabitada e o plano da vida criada, num tempo outro, num sonho outro. A caverna, onde a poesia e a sílaba acesa se direccionam para o sentido profético do “verbo-milagre”, que tem o poder de acarretar à vida, ao explosivo campo da linguagem, qualidades metafísicas da morte e, ao mesmo tempo, revelá-las em seu esplendor de vida. Um tempo sem alicerces e sem inquietude quanto à falta de alicerces, pois talvez isto seja o que a poesia era antes de a começarmos a metamorfosear. O poeta Herberto Helder profere apocalipticamente: Um poema cresce inseguramente / na confusão da carne, / (…) E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. / E já nenhum poder destrói o poema. / (…) — Em baixo o instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério. / — E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
O poema e a poesia deverão imperiosamente criar o seu próprio tempo, pois se não o fizerem, não estaremos perante poesia, mas perante uma outra qualquer forma ou estrutura de linguagem. O poema e a poesia fugindo do tempo linear em que assenta a força motriz do mundo, ou dos “mundos” (que aparentemente representam o real, mesmo se estivermos ante a denominada “poesia do quotidiano”) impondo de forma absoluta o seu próprio mágico e doloroso labirinto.
Profere T. S. Elliot, nesse fabuloso livro que se chama “Quatro Quartetos”: Ou seja, que o fim precede o princípio / E que o fim e o princípio sempre estiveram lá / Antes do princípio e depois do fim.“
Ou seja”, não deverão poesia e poema, abertos e subtis em seu permanente jogo de contrários, nessa imprevisível dialéctica entre espaço e tempo (o tempo fora do tempo e dos tempos) possibilitar as cúpulas para uma leitura outra (porque um tempo outro) do “mundo” ou dos “mundos”, em que quase sempre julgamos ilusoriamente ser deuses capazes do inefável, capazes de navegar o tempo inexplicável da intemporalidade?
O tempo da poesia, o tempo do poema, o tempo funcionando sempre, em cada momento único, como o descentramento da fortuita realidade em seu e nosso infinito labirinto.
Na eterna errância do poeta em direcção à morte, o que mais importará será a viagem, o trajecto, o longo trilho da memória sob o orvalho, o tempo dentro do tempo – o verbo corpo de linguagem. Infinita. Sempre aberta à imaginação, à sagrada ilusão da sílaba, o caminho outro, a consciência de uma particular visão do mundo derivado de um tempo próprio e único, como se a criação poética pudesse ser a brutal fonte da lucidez que brota da ilusão justificada – a verdade, essa ficará para os deuses.
Pois mesmo em poetas como, Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rimbaud, Withman, Baudelaire, F. Pessoa, Elliot, Pound, Yeats, Lorca, H. Hélder e outros, o tempo da poesia é apenas a concentração absoluta e pura da vida e da morte em sua trágica e divina ilusão, o carnal corpo da linguagem sempre exposto à ilusão do tempo e à absurda alucinação da metáfora. A peregrinação. A viagem com fim marcado.
Samuel Beckett não tem dúvidas quando pronuncia: Que faria eu sem este mundo sem rosto sem questões / Quando o ser só dura um instante onde cada instante / Se deita sobre o vazio dentro do esquecimento de ter sido.
O sentido e a rota inexorável do futuro estará sempre inscrita no que fazemos no presente. E é por isso, que é essencial fabricar-se uma perspectiva em que o tempo do poema terá que ser o centro em que se gerará a ideia de um tempo outro. Um tempo em que não exista tempo fora dos desejos dos sonhos e da memória. Onde talvez não exista sequer tempo fora dos signos que se sobrepõem aos sonhos e utopia que os invocam. Mas terá que ser forçosamente o tempo do poema, da poesia, a contradizer em seu habitat, em seu sopro de tempo, tal condição. É esse tempo que se apelidará de “tempo da poesia”. O tempo em que como diz Fernando Pessoa: Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas… / Que já têm a forma do nosso corpo…/ E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre / aos mesmos lugares.
O sentimento de um tempo, o tempo do canto feroz, onde a cilada e a cólera, a espera e o desespero, nascem dessa perspectiva de campo de fantasia, do lugar outro – a poesia!
Logo, não admira, que essa busca insana de imortalidade, de intemporalidade, nos iluda, mais ou menos consoante a dialéctica entre o espaço e o tempo, dependendo da forma com que neles nos representamos, tendo em conta a percepção da finita existência do verbo e da memória. Apesar da permanente ilusão de permanência no tempo do poema.
Pois é lá, na beleza do caos, no tudo que é nada, que a eternidade poderá iludir-se que acontece. Mas na verdade, o tempo do poema terá que continuar a ser o leito sagrado onde o poeta tecerá a urdidura que permitirá sonhar um mundo outro, um lugar outro, fabricando o linho ou a mortalha que concederá o sentimento continuado de ser omnipotente. E será esta urdidura no tempo do poema, que sustentará o leito mortífero do tempo. A poesia em sua harmoniosa e fatídica plenitude. A morte como alimento de vida. A poesia como língua-milagre em seu espaço aberto, capaz de transfigurar e metamorfosear a realidade e veracidade do homem, pois ela, como referiu Octávio Paz, é um “tempo revelado”, ou seja, a “enigmática transparência” do sopro incandescente. Pois, Não será o medo da loucura / que nos forçará a pôr a meia-haste / a bandeira da imaginação – André Breton,”Primeiro Manifesto Surrealista”, uma vez que como canta Pedro Tamen: A minha desforra são palavras / Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará.
João Rasteiro, Silves, 25/04/2010

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