sábado, 23 de fevereiro de 2008

Traduções III

Mentre il silenzio perdura

Nel centro docile dell’attesa
cattedrali sanguinano gli occhi mordenti la calma.
E l’olio e il vino, sciolsero
il seme in bozzoli dorati, che
gli alberi fendettero.
Il corpo, lo divorano i metalli incendiati
nella danza dei polmoni, che bambini
rinnegarono nell’eclissi.
Forse nel marmo calcificato di promesse
l’orto si purifichi, cercando nel candore
della luce, il puro tatto dei suoni.
E l’uomo strazia il respiro, lapidato nella
saliva delle unghie, dove uccellini volano tra le dita
curvate sul volto di acacie.
Nel sale di questo pianto, l’apprendista segreto
di sogni e luce.
Su queste vetrate dal veder passar
le parole, dalla polvere che si scuote,
accetto il silenzio come un amante.


Enquanto o silêncio durar

No centro dócil da espera
catedrais sangram os olhos que mordem o sossego.
E o azeite e o vinho derreteram
a semente nos casulos doirados, que
as árvores talharam.
O corpo, devoram-no os metais incendiados
na dança dos pulmões, que crianças
renunciaram no eclipse.
Talvez no mármore calcificado de promessas
o horto se purifique, procurando na candura
da luz, o puro tacto dos sons.
E o homem rasga o sopro, lapidado na
saliva das unhas, onde pássaros voam pelos dedos
curvados no rosto das acácias.
No sal deste choro, o aprendiz secreto
de sonhos e luz.
Nestas vidraças de ver passar
as palavras, desde o pó que se sacode,
aceito o silêncio como um amante.

La danza delle madri

Nella bellezza incurabile delle ferite
si alimentano madri senza tregua.
Nei fiumi in secca, battono e battono i cuori
alimentati da sangue freddo e spesso.
Che è livido. Che cerca le radici.
Il cuore è una strana bestia, che va camminando
goccia a goccia. E le ferite imprudenti
si approssimano alle madri, imprudenti al peso
di ogni respiro. L’amore eternamente feroce.
E le ferite delle madri, sono ogni volta più belle.
La paura cammina violentemente più vicino,
nel corpo, nel viso, nelle vertebre e nel ventre,
dove si ripara con il suo volubile volume
il silenzioso amore di madre.
Sotto il fogliame dell’acqua, madri stanche
dell’ aridità che le tocca, si incendiano attraverso
i figli. E i figli, quel piombo conficcato
nelle ali, quel progetto che sopra il mar si estende
alimenta le ferite mediante i tendini.
Le madri piluccano sulla sabbia la loro rotta chiara,
fino alla fine del mondo . Come per l’ultima volta.
Sulla montagna, un figlio si incorpora nella bellezza
incurabile delle ferite, mentre madri tastano
la pietra, fino a divenire fiore.
Talvolta sanguinano e cantano, asciugano gli occhi,
strappano i sessi e in permanente lotta, corpo
a corpo , l’amore si estende, ma i gesti
sono freddi, in questo camminare osceno
di persone senza frutti. Deve entrare in una goccia, tutto
il tempo, tutto amore, di una vita senza storia.
Tradução: Alberto Sismondini
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A dança das mães

Na beleza incurável das feridas
alimentam-se mães sem trégua.
Nos rios secos, batem e batem os corações
alimentados em sangue frio e espesso.
Que é lívido. Que procura as raízes.
O coração é um bicho estranho, que vai caminhando
gota a gota. E as feridas imprudentes
aproximam-se das mães, imprudentes ao peso
de cada sopro. O amor eternamente feroz.
E as feridas das mães, são cada vez mais belas.
O medo caminha violentamente mais perto,
no corpo na cara, nas vértebras e no ventre
onde se abriga com seu volúvel volume.
o silencioso amor de mãe.
Sob a folhagem da água , mães cansadas
da aridez que as toca, incendeiam-se através
dos filhos. E os filhos, esse chumbo cravado
nas asas, esse projecto que sobre o mar se estende,
alimenta as feridas pelos tendões.
As mães debicam sobre a areia a sua rota clara,
até ao fim do mundo . Como pela última vez.
Sobre a montanha, um filho incorpora-se na beleza
incurável das feridas, enquanto mães tacteiam
a pedra, até ser flor.
Por vezes sangram e cantam, secam os olhos,
arrancam os sexos e em permanente luta, corpo a
corpo, o amor estende-se mas os gestos
são frios , neste caminhar obsceno
de pessoas sem frutos. Há-de caber numa gota,
todo o tempo, todo o amor, de uma vida sem história.
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La danza delle madri

Nella bellezza incurabile delle ferite
si alimentano madri senza tregua.
Nei fiumi asciutti, battono e battono i cuori
nutriti di sangue freddo e denso.
Che è livido. Che cerca le radici.
Il cuore è uno strano animale, che cammina
goccia a goccia. E le ferite audaci
si avvicinano alle madri, audaci al peso
di ogni soffio. L’amore eternamente feroce.
E le ferite delle madri, sono ogni volta più belle.
La paura cammina violentemente più vicino,
nel corpo, nel viso, nelle vertebre e nel ventre,
dove si annida con il suo volubile volume,
il silenzioso amore di madre.
Sotto il fogliame dell’acqua, madri stanche
dall’ aridità che le tocca, si incendiano attraverso
i figli. E i figli, questo piombo inchiodato
nelle ali, questo progetto che si estende sul mare,
alimenta le ferite attraverso i tendini.
Le madri beccano sulla sabbia la loro chiara rotta,
sino alla fine del mondo . Come per l’ultima volta.
Sulla montagna, un figlio si fonde nella bellezza
incurabile delle ferite, mentre madri palpeggiano
la pietra, fino a diventare fiore.
A volte sanguinano e cantano, asciugano gli occhi,
arrancano i sessi ed in lotta permanente, corpo
a corpo , l’amore si estende, ma i gesti
sono freddi, in questo camminare osceno
di persone senza frutti. Così da entrare in una goccia,
tutto il tempo, tutto amore, di una vita senza storia.
Tradução: Angelo Manitta
(Oltre la siepeAntologia del premio Publio Virgilio Marone – 2004)



domingo, 10 de fevereiro de 2008

Traduções II

Poema de los jardines ausentes

Hoy recorrí todos los jardines de la tierra
y estoy a tus pies con las manos vacías, mi amor,
los jardines sólo respiran ese desnudo fulgor
rutilando caligrafias en el mismo centro de la piedra.

Mañana volveré a recorrer todos los jardines
al ritmo casi inmóvil de un secreto,
en un murmullo que preserve el aliento
para sumergilo en una boca de mujer.

He de recorrer todos los jardines sagrados
que habitan delicados y densos laberintos,
y hallar los vocablos de los pétalos de la rosa
que unen lo entredicho al centro de las palabras.

Y es como si las rosas naciesen de los dedos
como una raíz imitando los frutos, mi amor.
In, Cánticos de la Frontera - ( Trilce Ediciones - Salamanca),2005
Tradução de Alfredo Perez Alencart
....................... OOO..........................

Poema dos jardins ausentes

Hoje corri todos os jardins da terra
e estou ao pé de ti de mãos vazias meu amor,
os jardins só respiram esse fulgor desnudado
a rutilar caligrafias mesmo no centro da pedra.

Amanhã voltarei a correr todos os jardins
ao ritmo quase imóvel de um segredo,
num murmúrio que preserve o alento
para mergulhá-lo numa boca de mulher.

Hei-de correr todos os jardins sagrados
que habitam subtis e espessos labirintos,
e encontrar os vocábulos das pétalas da rosa
que unem o interdito ao centro das palavras.

E é como se as rosas nascessem dos dedos
como uma raiz imitando os frutos meu amor.

Prefácio ao livro "No Centro do arco

Em "A Respiração das Vértebras", primeiro livro do poeta João Rasteiro, finalizava-se com um pequeno passo de um outro texto, publicado na 1º série da revista "Oficina de Poesia", a cujo Conselho de Redacção o autor pertence. A "collage" foi identificada apenas por alguns, mas é o espírito que subjaz à utilização dessa técnica, bem como o contexto em que o trabalho se desenhou, que me importa aqui referir. Falo do diálogo que uma pequena comunidade poética vem a desenvolver há já cerca de 10 anos. João Rasteiro integra essa comunidade, criada no âmbito de um curso livre de Escrita Criativa (Oficina de Poesia) título que passou à revista, oferecido pela Universidade de Coimbra e dirigido por mim própria. A "sagrada" - autor/ia-autor/idade - constitui-se como uma espécie de núcleo temático do debate, num curso em que o individualismo "inspirado" e "genial" é não só questionável mas, quase sempre, também dispensável.
A consciência de que usamos como material as palavras da tribo e a certeza de que o nosso trabalho poético - que entendemos como trabalho de reinvenção - só faz sentido no seio da comunidade mais vasta, leva-nos a afirmar, com Robert Duncan, entre outros, que todos somos derivativos. O poema surge, assim, "ditado" pelas vozes que enchem a nossa experiência pessoal: as vozes da história e da cultura da tribo em que nos incluímos, as vozes de toda a evolução do universo em cujo movimento participamos, as vozes de toda a tradição literária de que fazemos parte (mesmo pelas vozes que aí rejeitamos) - mas também pelas vozes que fazem a insignificância(tão significativa) do nosso quotidiano, em que, para alguns de nós, existem as vozes de outros poetas com quem nos encontramos, semanalmente, para trabalhar em conjunto (e isso pode traduzir-se, por exemplo, em poemas escritos a várias mãos, em "collage" em variações sobre poemas de outros, etc).
O final de "A Respiração das Vértebras" surge assim também, de certo modo, no início deste novo livro de João Rasteiro: "No Centro do Arco" começa com duas epígrafes e uma delas é de Robert Duncan, tal como era de Robert Duncan aquele título do poema final no livro anterior,"A Grande Deusa", por mim, já antes, apropriado. Digamos que, no nosso diálogo semanal, certas obsessões se vão tornando centrais e que vejo, neste trabalho de Rasteiro, uma espécie de resposta às minhas próprias obsessões, que partilhei (para o bem e para o ma) ao longo de vários anos de estudo sobre o trabalho de um dos maiores poetas norte-americanos da segunda metade do século XX. Numa imagem de círculos concêntricos, a obra de Duncan é central, decerto inaugurando novos centros de movimento que, de forma complexa, se alargam, inter-agindo - com o italiano Salvatore Quasimodo, por exemplo, a quem pertence a segunda epígrafe a este livro.
As duas epígrafes remetem-nos, de imediato, para a unicidade entre a vida e a morte. No centro, entre as extremidades desse arco - e os ecos de "Bending the Bow" de Robert Duncan surgem bem claros - se colocará a voz do poeta deste livro, já duas vezes premiado na Itália de Quasimodo, com os poemas: "Enquanto o silêncio durar"(31),"Menção Honrosa", Concurso Internacional "Poesie Sulle Piastrelle", Zacem 2001;"A Dança das Mães" (41), Segnalazione di Merito", Concurso Internazionale "Publio Virgilio Marone", da Accademia Internazionale "Il Convivio", Castiglione de Sicília, Itália, 2003.

No centro de um arco situado no coração da terra, o corpo se erguerá em direcção à luz (da vida) e, nesse acto de encontro criador, amorosamente, irá criar a sua própria morte - a sua própria e repentina "noite",diz Quasimodo: dois raios de uma mesma luz, numa única promessa que é passado, presente e futuro.

Também como Duncan - e os românticos, em geral - João Rasteiro escolhe a metáfora da árvore como corpo representativo, devolvendo-nos, desde logo, a uma concepção de escrita que se pretende orgânica e física. A primeira secção do livro,"Tronco", procura a visível concretude do acto/corpo/poema. Logo no seu primeiro texto, deparamos com o divino hálito inspirador feito agora respiração humana, bafo nos dedos que agem sobre a palavra - acto nas linhas do arco. A escrita surge como acto de amor e vida, no tempo único entre caos e ordem, entre trevas e luz, trabalho realizado numa espécie de vigília que passa, do assombro, à "lucidez do corpo". Essa é a "nitidez" do processo, uma nitidez – uma forma/poema/corpo do poeta - "em constante mutação", como os dedos do autor/criador. A presença do corpo, a presença da pura materialidade que é a forma, surge como única e total presença do sagrado.
De resto, todo o vocabulário escolhido por Rasteiro se encontra eivado de uma profunda religiosidade, produzindo-se um efeito ritualístico, em que a voz do poeta nos capta, de forma encantatória, como uma voz de sacerdote, a voz daquele que encena o ritual. O tom conclusivo dos textos apresenta-se como uma espécie de catarse: uma espécie de momento de aprendizagem, de momento de iluminação, que se encena uma e outra vez. Por outro lado, este carácter repetitivo parece traduzir também o carácter físico do acto criador, num registo metafórico que nos traz, além da sensualidade, a própria sexualidade como princípio sagrado, presente em toda a natureza: no "sémen dos frutos" (19); no tronco que "avança decidido para o útero do fogo" (20), mergulhando na terra que "é fêmea" (21), no "desenho branco no odor da fêmea" (22), em "lume de cerejas de carícia em carícia"(24). Esta "embriaguez do verbo vegetal" (25) lembra-nos rituais dionisíacos e também o grande poeta do sagrado do amor e da embriaguez, Rumi (veja-se, por exemplo, o poema "Horizonte imediato" (22). Contudo, em Rasteiro, mais do que com a celebração deste amor e desta embriaguez, confrontamo-nos com um processo penoso de crescimento (que é também o da escrita), em que a perda dos sonhos e a procura da lucidez possível se vão desenhando em agonia difícil - por entre a manutenção dos opostos, mais do que por entre antíteses - e onde o poeta aprende "difícil (...) a arte do silêncio" (25). Trata-se de uma arte que se faz em luta - e o carácter agónico presente na metáfora do arco e da flecha assume aqui a sua verdadeira dimensão.
No poema "Círculo" (23), o poeta fala-nos da imensa crueldade deste movimento, desta luta, em que a abertura para uma nova imagem parece irromper violentamente dos membros, num espécie de parto que, como sabemos, para criar, destrói: "parte" a imagem/corpo de onde nasce, como se dois arcos (de vida, mas também de morte) se acoplassem para formar um só círculo. O início das duas primeiras estrofes faz-se pela negativa, bem marcada pela pausa:"Ninguém"; "Nada".Porém, a terceira estrofe inicia-se na plenitude: "Extensa". A morte paira e, perante essa sombra, o trabalho alquímico sobre as palavras manifesta-se no objectivo, sempre inatingível, de dizer toda a dimensão do real. A consciência da sombra leva ao desejo, às "palavras em fogo", mas o acto pela vida revela-se como um "suicídio calculado", no conhecimento de que toda a criação transporta a sua própria destruição. No último poema de "Tronco", "O sopro da língua" (28), o poema/corpo/tronco surge-nos como "arco do sopro/do som" e, nele, todas as forças da natureza - a linguagem incluída - se encontram, "a pulsação das sílabas sobre os pulsos abertos", para se reconhecerem como matéria desse mesmo corpo(numa irmandade que evoca S. Francisco), celebrando-se "num só corpo estendido/para uma silenciosa festa de irmãos".
Este silêncio é identificado como a raiz, sendo "Raízes", precisamente, o título da segunda secção da obra. É no silêncio que o poeta mergulha, como amante, dele extraindo alimento. Em "Círculo Total" (32) se fala dessa procura de alimento, numa espécie de pré-história do poema e do humano, em que o poeta se faz caçador, mas também nómada e peregrino - seguindo o trilho e o caminho da palavra, como sustento infinito. Este regresso ao arcaico, à raiz da civilização, mantém-se ao longo de toda esta segunda parte da obra. Nela encontramos o percurso humano: caçador (32), guerreiro (33), ferreiro e alquimista (33-34), trabalhando os metais na demanda da luz."Na lucidez do círculo" (35) parece descobrir-se a escrita, "um espaço onde se lêem linhas", que é "um espaço mutilado", onde encontramos, de novo, "o bafo do animal vacilante", a respiração humana - do selvagem/poeta que, na palavra, procura o fim do movimento: um sonho/sopro que termina calcinado pela própria luz/fogo que tanto deseja como absoluto. Esta parece ser a lucidez do círculo.
A água e a pedra acalmam este fogo, logo no poema que se segue, assim, de novo, se reconhecendo a unicidade divina e absoluta do tempo, do corpo e do sonho. Neste "lugar legível" (36), que adiante surgirá como "transpiração da terra", o poeta se alimenta (37). Quase poderíamos dizer que esta secção do livro é também sobre o cultivo, a(gri)cultura da palavra, que é também a terra e o corpo da amada. Nesta palavra/terra/amada, o poeta penetra, fazendo-se raiz, para daí se erguer como árvore. Daí, a necessidade do sulco do arado: a necessidade das linhas da escrita do poema. Há que macular o corpo da terra/linguagem/amada para poder sobreviver: esse é o pecado inevitável e a queda feliz - "e depois sentir-me capaz de caminhar no incêndio/enfeitado nas tranças da serpente"(40), diz o poeta. A imagem final desta segunda secção do livro deixa-nos, então, os dedos do poeta a soltar a flecha, uma flecha feita "borboletas" que, em vez de voarem para o alto, voam em direcção à terra, assim a fecundando.
Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em metamorfose. Não se trata de sobreposição de contextos, mas de uma passagem sintáctica, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em metáfora, através de uma multiplicidade de contextos. Lidando com um léxico de enorme simplicidade, quase sem recurso a abstracções, o poeta consegue, assim, um trabalho em que a complexidade se traduz num excesso quase barroco, de onde emergem momentos de iluminação que, circularmente, se repetem.
Em "Folhagem", última secção do livro, as imagens de aves e de voo dominam. Entre as duas extremidades do arco, entre a vida e a morte, só o acto é libertador. Em última instância, só o movimento das folhas importa, só a flecha solta para uma qualquer direcção. No desejo, sempre a mesma ilusão - a ficção credível, que nos sustenta a vida, diria Wallace Stevens: a sua Suprema Ficção sendo a poesia. Rasteiro chama-lhe "a ilusão maior" (45), para onde há o infinito "retorno" (46). Esse é o "rito inesgotável" (49), em que a redenção se torna possível. Algo de arcaico, "teia dos velhos deuses", chama-lhe o poeta, para cobrir uma "ignorância originária".Sobre esse rito, sempre a mesma morte pairará mas, na consciência da lâmina, a vida continua a fazer-se:"as florestas respiram na planície do corpo".
O voo da árvore/poema/poeta é vertical (53), sempre em direcção à luz e à terra, sempre no centro do arco; o ciclo sempre a repetir-se na folhagem que "regressa eternamente/e forma pares imprevisíveis" (53) - e forma novas associações, e forma novas metáforas, poderíamos dizer.

O último poema de No Centro do Arco deixa-nos a dificuldade do caminho, "Sob o azul" (55), e uma árvore alquímica, imperfeitamente criada, na ilusão da permanência que é a permanência dos metais: em vez de ouro e luz, esta árvore é "bronze aceso como luz" e "ferro" que, porque criação humana, será "fulminante" para o seu criador. No entanto, esta árvore revela-se também como o novo hálito deste criador, "as suas mãos ávidas de boca" - a suprema ilusão da criação humana, sob o azul, no centro do arco. Esse é o lugar/tempo único que o poeta João Rasteiro conhece como seu. Essa a sua reconhecida ilusão, o seu único absoluto, a sua única promessa.
GRAÇA CAPINHA - Professora, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

Livros III

Onde se perde a asa
Calcário de flores despidas
nos homens com cio já purificado
o silêncio do barro
em lãminas de aço róseo
e nas mãos o óbolo último
onde se perde a asa de outrora
anónima e vazia
desflhando relâmpagos sobre mim.
.
Se o paõ for invadido pelo sal
vejo frágeis pulmões em agonia
no silêncio que irá prostituir as palavras.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Poema IV

Algum dia o teu corpo alastrará
como cães sem boca e olhos esboroados
serás escondido em toalhas de musgo
um embrulho de carnes malditas
onde os indesejados pernoitam velados
nas noites em que os ecos se dissolvem nus.

Os teus irmãos esquecerão o teu aroma
como no principio divino dos abutres
no silêncio acercará alguém à cidade
para apagar os vestígios desnecessários
nas vozes que habitam os íntimos pomares
os frutos rutilantes nas escoras urbanas

nesse lugar tu estarás na dilatada blasfémia.

Ensaio II

Não se nasce poeta. No entanto, acredito que alguns nascem com algumas propensões para poderem vir a emboscar-se no acto poético. Contudo, a leitura, o estudo, a prática, o intenso exercício de oficina, escrevendo e reescrevendo, são essenciais para talvez se vir a ser um excelente poeta. E é tudo isso que Andityas Soares de Moura é, fez e continua a fazer. Conjuntamente com nomes como Iacyr Anderson de Freitas, Claudia Roquette-Pinto, Ricardo Aleixo, Claudio Daniel, Fabrício Carpinejar ou Márcio André, é, sem dúvida, hoje, um dos mais expressivos poetas da poesia contemporânea brasileira.
Soares de Moura possui a capacidade de conjugar a sua alta erudição (ao grande domínio da língua e cultura latinas, alia um tratamento de grande intimidade com os poetas provençais e escreve com a mesma facilidade e docilidade com que fala mineiro) com a realidade que o cerca como espigões acesos, "um/som//:o do peito sendo aberto/".
Em Soares de Moura encontramos uma poesia quase sempre espalhada no branco da página, assente em formas rebeldes, mas ajustadas numa escrita concisa, onde a preocupação extrema com a estética das palavras é reflectida na sua sonoridade. Sendo um poeta virado para o real, para quem a poesia é a arte do fazer, é a arte e faculdade poética, mas sempre como poiesis – criação, cri(ação) sob todas as arestas -, a sua poesia é "tudo que respira/canta a glória de estar/por enquanto,//e só por enquanto,//vivo/".
Soares de Moura não concebe a arte poética, se esta não questionar constantemente o real, como se a poesia fosse o último guerreiro atento à tirania do poder, à tirania da própria linguagem. A arte e a poesia ao serviço do carpe diem, do ensejo único, o nosso.
Como refere o poeta Glauco Mattoso, a poesia de Andityas Soares de Moura, "oscila entre o moderno e o arcaico, com traços concretistas namoriscando o mais arrevesado latinório", que embebida numa alta tensão lírica, fará decerto de Andityas Soares de Moura um dos nomes maiores da poesia brasileira deste desencorajado início de século.
João Rasteiro(*), Dezembro de 2007
(*) Texto incluido na Badana/Orelha da Antologia de Andityas Soares de Moura: "Algo Indecifravelmente Veloz" - edium editores

Cartas III


Recenções I

Graça Capinha e João Rasteiro
Gostaria de começar esta apresentação da primeira obra deste jovem autor, chamando a atenção para o seu título: Respiração das Vértebras. Porque é um título que tem que ver com uma grande tradição da escrita desde o início de um século que entretanto acabou, o século XX. Fala-se hoje muito da escrita do corpo e do corpo da escrita, mas foi a grande revolução modernista, de há precisamente um século atrás a grande responsável pela recuperação do corpo para a literatura. E a ruptura que isso significou não se deu apenas, e nem se quer de forma mais importante, ao nível dos paradigmas éticos ou morais. A ruptura mais importante deu-se e continua a dar-se, porque ainda não acabou e o seu desafio continua - ao nível dos paradigmas dominantes no próprio pensamento do século XX e deste agora nosso século XXI.
Qual é o corpo da escrita? Corpo humano e corpo da linguagem? Qual a natureza da sua materialidade? Qual a natureza da matéria humana que lhe dá forma? E ao pensamento forma? E ao pensamento transfigura? E nessa transfiguração, a nós próprios e à imagem do mundo nos faz irreconhecíveis?
Diz o poeta João Rasteiro, em Mutação (pp. 26-29):

1 (...)
a boca cheia do corpo
onde o coração se consome agachado e devagar
uma sincera cegueira
desde a respiração palpitante entre as bocas
e as guelras onde levita a carne.
(...)
3
Entrando pelas fendas, batendo, rebentando
nos brônquios a válvula do corpo
de um corpo de pedra em perda
prisioneiro de formas em que não cabe
polpa asfixiando o caroço
nas raízes doces do útero permissivo.
4
Onde o fogo lambe as cicatrizes
há um homem debaixo da pele.

Lia, há apenas alguns dias, com os meus alunos de poesia contemporânea, os poetas ingleses da Primeira Grande Guerra. Alguns daqueles que morreram nas trincheiras, questionavam - então de forma extrema(foi no século XX, e este não parece ir melhor...) - a questão da escrita e do corpo. Perguntavam-se pela escrita no corpo, aqueles soldados/poetas, perante a mutação humana das formas mutiladas. Perguntavam-se pelo melhor dos mundos que a modernidade lhes prometera e deixavam-nos quase sempre na entropia do silêncio ou na exigência do dever de ficar loucos."Só tenho as mãos à frente, entre o rosto e a fogueira", diz-nos Herberto Helder, numa das epígrafes que João Rasteiro escolheu para iniciar este livro. Estas são as mãos que escrevem, as mãos da escrita - que se queimam quando a fogueira se aproxima: a fogueira de um mundo (quase sempre em chamas, neste século ora terminado) que verdadeiramente nos leva ŕ criação: apenas o nosso mundo da matéria e do corpo - sem nada de metafísico. O fogo divino, tal como Nietzsche anunciava na sua morte de Deus, tem por força que se transformar num fogo meramente humano, na sua grandiosa insignificância - essa grandiosa insignificância que João Rasteiro escolheu celebrar.

Esta é a fogueira que mutila o corpo e que dolorosamente se inscreve na página, criando novas formas humanas (formas que se procuram mais verdadeiras) através dessa inscrição numa página que arde, pois essa é a página da nossa História. E é a linguagem no centro desta história que este livro interroga e questiona de forma agonista. Como diria um dos meus poetas favoritos, Robert Duncan: um livro que se constrói como uma larva dentro do seu casulo, lutando contra a própria matéria que lhe dá vida, para se libertar e nascer forma outra - uma borboleta."Rebentando os diques dos seus membros" (p.17),afirma Rasteiro - lutando contra o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de por força ser outro corpo. Podemos ler em "Sobrevivência" (pp. 15-18):
1
uma quantidade de sopro e dor
apenas com a luz das suas feridas (...)
3
O canto que se perde nas searas da língua
a subtileza de desenhar promessas
rebentando os diques dos seus membros
desafiando a teia que inunda a nudez da carne
na hora inquieta da respiração suspensa. (...)

Um poema sobre a sobrevivência dura, agónica, que encontra o seu limite na forma que não dá mais de si: o fruto maduro. O mesmo limite que encontramos na secção 4 do mesmo poema, em estrofe de verso único:" A sobrevivência dura num gosto de ameixas maduras". Estamos perante uma poesia que se escreve nos limites, nos limites da criação (o fruto maduro) e nos limites da linguagem que a serve. Esta é a poesia inaugurada pelo modernismo no que o modernismo significou de questionação da própria modernidade: de questionação do sentido do moderno e do progresso. Este, o corpo da linguagem que se constitui como ruptura epistemológica, ainda impossíveis de conceber. Aí reside o limite e o agonismo, porque é uma luta a partir de dentro, uma luta pela imensa possibilidade em cuja margem nos damos conta existir:
"A Margem"
(...)
2
O vento bate nos ramos da margem
enquanto a pedra queimada no centro
anuncia as bagas
que rolam na ressaca cozida
em pêndulos e frágeis
a nudez e a cegueira
o mosto aberto do búzio encantado.
3
Até ao centro onde pulsa a margem
enredo a respiração sob os dedos ponteados
no búzio onde as constelações se incendeiam
ao sopro das pétalas repisadas
na cor moribunda dos frutos. (...)

Nascemos pois para a infinita possibilidade e não para a necessidade; nascemos apenas para uma mortalidade feliz em que o todo da criação permanece por terminar: o todo da criação onde tudo permanece incompleto - à espera da acção, à espera da participação individual na transformação da matéria, à espera desse acto gratuito que estabelece a relação entre os elementos, a relação entre as palavras, a relação entre os corpos. À espera, tão simplesmente, do princípio repetido e, por isso, co-primordial, de um acto de amor. Esta é uma poesia agonista e de limite, mas também, e simultaneamente, uma poesia em que o processo alquímico do estabelecimento de relações produz a transfiguração per-manente do mesmo e nisso se regozija, celebratória: respirando as vértebras. Como um recém nascido, que inspira pela primeira vez o ar e aí se reconhece corpo, fora do limite do ventre da mãe, entrando agora e apenas no limite de si próprio, no limite das suas próprias vértebras ao ar nos pulmões. Afirma o poeta, em "Respiração das Vértebras" (pp. 9-14):
1
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal. (...)
4
No cerne do fogo na argila da criação
os corpos interrogam as coisas e emudecem
o deslumbramento do primeiro dia
o fascínio da descoberta sobre
um corpo intensamente só. (...)
6
Os corpos necessários no remoinho da garganta
desaparecem como floresta abatida
como a folhagem iluminada das antigas idades
a respiração duradoura e frágil
o salto imortal de uma miragem.

O salto imortal é o repetido salto para a eternidade do processo que é a vida, "respiração duradoura e frágil". As antigas idades recordam-nos, sugestivas, essa passagem do humano pela História, idades que são marcas do que já não está e que contudo permanece. E a garganta faz-se então o remoinho, metonímia do humano e da linguagem, lugar momentâneo e sôfrego querer engolir o mar que é todo da criação. O mesmo lugar momentâneo e sôfrego que é o corpo da paixão do Amante pelo corpo Amado. E o corpo do amante é o corpo do poeta, tal como o corpo da amada é o corpo da linguagem, a própria poesia. Aí o poeta/amante se dá vida, respira as vértebras e se transfigura: corpo de argila que vai cozendo em novo molde, até que adormece "como espiga madura e exausta", diz Rasteiro ("Presságio",p. 23).

Esta é a poesia do nosso século, a poesia que responde à nossa História onde as promessas de mundos perfeitos se goraram, onde o futuro parece ter falhado, sendo preciso reinventá-lo. Este, o mundo onde o poeta tem a responsabilidade de não perder a capacidade de resposta. Para tanto é preciso que os poetas sejam capazes de ousar ir à descoberta do ainda inconcebível, tal como João Rasteiro foi capaz de ousar. Por isso, necessariamente, vejo a poesia do nosso século como investigação epistemológica ou, se quisermos, como uma poesia que necessariamente deve voltar ao sentido etimológico de poiesis: fazer, construir. Urge fazer, reinventando, outras visões do mundo e para isso precisamos cada vez mais dos poetas: precisamos - desesperadamente, estou em crer - desta arte considerada tão inútil no mundo contemporâneo. A poesia será, nesse sentido, uma forma extrema de exercer o político e autores como João Rasteiro incluem-se claramente nessa tradição de demanda poética que nietzschianamente nos exige a felicidade sobre a terra. Assumir essa responsabilidade é uma tarefa difícil, que exige, tal como o poeta afirma, "feroz plenitude" e "rendição humilde", celebrando a forma grandiosa com que construímos catedrais - e cientes, como diria o grande poeta modernista norte-americano William Carlos Williams, no seu poema "Spring and All", de que entramos neste mundo nus, tendo como única certeza, assustadora, o nosso acto de entrada: a enorme dignidade de cada parto para dentro de um mundo de morte. Lembrando Williams, vejamos o poema "Obses- são" (p.42) de João Rasteiro, um poema que se constrói num jogo quase oximorónico com a rima interna:
Vejamos o seguinte poema:

o lugar do sono a maçã precipitada decapitada arqueja
ela o estendal do visível
barco em agonia dicotomia impune
um corpo de outro corpo natural
no orvalho paciente inocente sopro
que enrola vértebras fendidas
ressoando a morte sorte inspirada
em símbolos de feroz plenitude
obsessiva respiração a rendição humilde
alinhada no potencial do corpo
as vozes celebrando assustadoramente
como catedrais o seu próprio parto.

E gostava de terminar, olhando para o poema que encerra esta primeira obra do poeta. João Rasteiro termina com um texto sobre o linho: o linho antigo das toalhas dos partos e dos lençóis dos noivos, mas também, e por que não, o linho das mortalhas. Trata-se de um poema sobre esse tecido puro e fresco que nos aconchegava e nos acompanhava o corpo - que nos aconchegava e nos acompanhava a respiração das vértebras - nos seus momentos mais importantes: o nascimento, o amor e a morte. O tecido puro e fresco que, tal como o corpo, nasce cíclico do ventre materno e eternamente (pro)criador da terra:
"Agonia do linho"
1
No dorso inacessível da agonia
o gelo incendiado do remorso
coze as dores com o desejo
nas asas suaves do bafo mal abençoado
aguardando pacientemente em vigília
o pássaro que procura a infância.
2
A dança mágica dos gafanhotos
anuncia o pólen sedutor
em que o corpo nascido na véspera
se acende em lâminas por dentro
sem medo de enfrentar a serpente
que domina o silêncio da falésia.
3
A boca aberta respirando o canto das cinzas
talvez esconda o contorno do relâmpago
as pálpebras húmidas das inundas máscaras
onde a respiração das vértebras chega a prender
o desespero sobre as colinas do linho.
4
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se vê o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
5
Nos pomares cresce a mortalha do linho quebrado.
.
In, Capinha,Graça (*); Revista "OFICINA de POESIA"(Revista da palavra e da imagem),nº O - II SÉRIE – Coimbra - 2002
(*)Professora de literatura na Universidade de Coimbra, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

Livros II

1.
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Poema III

A memória do nome

Esmaga em prensas de laje os golfos do nome
dir-se-ia um nome de larva ou sílaba azeitada
e o corpo está enrijado como Jesus a prumo
ser imponderável revestido de folhas brancas,

sob o arco da língua retesada os cascos surdos
esta boca imunda em lava aberta esta tribo
e o fogo nas mãos como soldas no centro do ar
o ritmo asfixiante do verbo o hálito sangrento,

toda a cegueira da sombra das liras espiando
ó bem amado nome diluído na refracção do eco.
João Rasteiro

Cartas II


Critica III

Luís Serrano
Os Cílios Maternos, de João Rasteiro - Luís Serrano
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Acaba João Rasteiro de publicar mais um livro de poesia, Os Cílios Maternos, desta vez com a etiqueta da Palimage; a capa deve a sua beleza a um acrílico sobre tela de Fernando Lemos.A obra vem acompanhada de um posfácio da autoria do escritor brasileiro Carlos Felipe Moisés que constitui uma leitura possível (e pedagógica, diria eu) desta obra. Mas outras (leituras) são possíveis e nisso reside grande parte do seu interesse.Se fizermos um rastreio das palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências não nos sobram dúvidas de que é, fundamentalmente, do corpo que aqui se fala e naturalmente dos sentidos e da sensualidade, corolário da relação masculino/feminino.Vejamos, pois, em primeiro lugar as palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências: artérias (1), boca(s) (8), carne (5), células (1), corpo (20), dedos (2), dentes (1), falange (1), garganta (1), língua(s) (2), músculo (2), pele (9),placenta (1), pulmões (4), rosto (2), sangue (4), sémen (2), tendões (3), veias (6), ventre (1), virilhas (3). Destas assumem especial relevância bocas, carne, pele, veias, vocábulos que nos remetem para um erotismo evidente.Das palavras ligadas ao que poderíamos chamar de os processos do corpo reteríamos cópula (2), fala (1), fluxo do sangue nas veias (1), germinam as crias (1), memória do corpo (1), olfacto (1) e respiração (3). São, pois, palavras ou conjuntos de palavras de sentido complementar às primeiras e também daqui se pode inferir a vertente erótica, quase obsessiva desta obra.Estou de acordo com o autor do posfácio quando refere o ímpeto fogoso, verdadeiro magma verbal [desta poesia]; já não entendo muito bem quando acrescenta: Pouco a ver, portanto, com a “escrita automática” ou o “ditado do inconsciente”, dos surrealistas, expediente com os quais o processo criador de João Rasteiro tem, ao menos à primeira leitura, forte afinidade […]. Afinal, tem a poesia de J. R. alguma coisa a ver ou não com o surrealismo? Para mim, é óbvio que tem. O próprio Carlos Felipe Moisés refere que o recurso ao insólito e às associações inusitadas comanda o fluxo ininterrupto de imagens […] (p. 45). E, de resto, qual é o poeta actual que pode, em consciência, dizer que não deve nada ao surrealismo? É preciso é ter consciência de que essa fase já passou, fez o seu tempo e deixou os seus frutos.Para além destes recursos de que se vale a poesia de João Rasteiro, refira-se ainda o emprego das palavras raras, tão do gosto dos simbolistas e do nosso Eugénio de Castro, em particular. Como exemplo, podem citar-se algumas palavras muito pouco comuns na linguagem quotidiana, quais sejam corla (p. 29), crísea (p. 25), gárgulas (p. 15) e lisérgicos (p. 26).Acrescente-se ainda a estes considerandos o emprego a p. 18 de uma sinestesia: o sabor do peso de um som inicial onde se podem detectar, porventura, algumas reminiscências do Carlos de Oliveira de Micropaisagem.Cílios, palavra que figura no título acrescida do adjectivo maternos, fornecem, na opinião de Carlos Felipe Moisés, a matriz da métaphore obsédante (Mauron).No meu modesto entendimento, cílios constitui o operador da purificação na sua qualidade de filtro e opõe-se, numa dialéctica da condição humana, ao apelo dos sentidos. O adjectivo nada mais faz do que reforçar esta acção de catarse subliminar, quer maternos se refira à mãe ou à terra ou à água, pois que é sempre uma alusão à receptiva feminilidade para citar uma vez mais o autor do posfácio.É um livro onde se assumem os contrários de uma forma que me parece óbvia. A este título, vejam-se os poemas da p. 13 ( Quando a floração do fogo dança / o verdadeiro sinal da água ecoa.), da p. 15 (Que o silêncio germine opaco / nas feridas cíclicas da noite / porque o sonho é o sonho da ausência.), este certamente um dos poemas mais belos da obra senão mesmo o mais bem conseguido, da p. 25 (É no fluxo negro de desertos acesos / que os corpos têm sonhos premonitórios / talvez esperando a cópula dos frutos.) e outros se poderiam citar.Diria a terminar, se algumas reservas se devessem apontar, que alguns poemas pecam talvez pelo facto do poeta não se ter eximido à explicitação demasiado frequente da comparativa como (14 vezes). Este emprego contraria o carácter elíptico que é tão próprio da linguagem poética.Aqui ou ali pode encontrar-se uma adjectivação de gosto duvidoso (placenta brilhante, por exemplo, que ainda por cima vai rimar com agonizante em rima cruzada, isto num livro onde se utiliza apenas o verso branco).Mas estas reservas (?) não são, de nenhum modo, muito significativas. Simplesmente, o autor destas linhas não ficaria de bem com a sua consciência se não apontasse aquilo que em seu entender é menor, até porque João Rasteiro poderá em obra futura corrigir tais pecadilhos.Os leitores ficam à espera porque esta obra tem já a maturidade que o futuro afinará.É, pelo menos essa, a minha convicção.
ARTES E LETRAS > Crítica Literária
O Primeiro de Janeiro - 2006

domingo, 3 de fevereiro de 2008

Poema II

Busca silenciosa
À Estrela Cenácula

Durante anos os procurei, um amieiro
a paixão, o amplexo do lugar, o clarão
das almas tristes, a infinidade da origem,
uma quimera de longos espaços virgens,
um cais de memórias, a construção
do sopro quando se sacrificam ditosos
os ranchos de pirilampos sob a madrugada
bebendo a luz nos espigões do horizonte.

Alguém morrerá na insídia das aldeias
roçando a frescura dos aguilhões dos rios
e a fúria das raízes germinará indigente
na visibilidade da luz entre o corpo e o lugar.

E as raízes crescem e crescem subjugando
os céus quando nos campos se procura o trevo
na magnifica volúpia da agonia dos movimentos.
João Rasteiro

Critica II

Em João Rasteiro, encontramos uma poesia cujas principais referências e influências se vão encontrar em nomes como os dos poetas Herberto Helder, Fiama Hasse Pais Brandão ou Daniel Faria, mas também em nomes como os de Charles Bernstein ou Gertrude Stein. É uma poesia do corpo, físico e essencialmente do corpo da linguagem.

Graça Capinha – Professora, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

Livros I


O corpo regresa ao seu corpo primeiro
ao júbilo maduro cozido e doce da carne
acendendo lâmpadas em que dançam cílios
uma arquitectura de luz palavras brancas
num sulco deslumbrante de fábulas azuis
em que mastigo a carícia de um sonho imaculado.

Traduções I


Beneath the Trees
But they still Kept their ease. Spread out, unbuttoned, grateful, under the trees.
SEAMUS HEANEY


A tree in order to have
root of incandescent wombs
a nest of rhizomes unseen
the initial breath inhabited
by skin blinded magnólias.


A tree of sharp teeth
devouring stones memory
the strangling innocence
where we breathe light the white
a secret path of narcissus
dilated smoothed scent
arms of cassiopeiae

on the naked splints honey-combs
between space and breath.


A tree stripped of birds
on the white lilies melancholy
or na unlimited echo
on the fury of the rubber tree colourless
for in the cracked flesh of the earth
amongst leafage and fire
clay is transmuted.


A mineral body inside
the cycle of coagulated seasons
the adoration of the tree forever
bending open leafs in flight.


A body the membranes breaking open
of tree itself against exhaustion
blood dripping to the roots
in water lines beneath groins
on the night stone of cities

where the tree of Judas seduces the beast.

On the quick sap of trees
i descend to the silent scars of speech
faking the resurrection of death.

Tradução: Sandra Guerreiro

In, Antologia Transnatural, Artez, 2006

Sob as árvores
"Mas lá ficaram ainda em seu sossego. Estendidos, desabotoados, gratos, sob as árvores".
SEAMUS HEANEY

Uma árvore para ter
a raiz dos ventres incandescentes
um ninho de rizomas ocultos
o sopro inicial habitado
de magnólias cegas de pele.

Uma árvore de aguçados dentes
que devora as pedras da memória
a inocência estranguladora
onde se respira a luz o branco
um atalho secreto de narcisos
o olfacto polido dilatado
os braços das cassiopeias
nos favos das lascas nuas
entre o espaço e a respiração.


Uma árvore desnudada de aves
sobre a melancolia das açucenas
ou um eco sem contornos
na raiva incolor da borracheira
porque na carne fissurada da terra
entre a folhagem e o fogo
a argila se transmuda.

Um corpo mineral dentro
do ciclo das estações coaguladas
sempre a adoração da árvore
a vergar folhas abertas no voo.

Um corpo rompendo as membranas
da própria árvore contra o cansaço
o sangue escorrendo às raízes
em fios de água sob as virilhas
na pedra nocturna das cidades
onde a árvore de Judas seduz a fera.

Na volátil seiva das árvores
desço às silenciosas cicatrizes da fala
simulando a ressurreição da morte.
João Rasteiro

Cartas I

Traduções de João Rasteiro I


HAROLD ALVARADO TENORIO:
Poeta Colômbiano, Harold Alvarado Tenório é actualmente um dos mais consagrados poetas do seu país.Entre os seus livros destacam-se Fragmentos y despojos,(2002); Summa del Cuerpo,(2002); Literaturas de América Latina, (1995); Poemas chinos de amor, (1992); La poesia de T.S. Eliot, (1988); Espejo de máscaras, (1987); Kavafis, (1984), etc. Recebeu, entre outros, o Premio Nacional de Periodismo Simón Bolívar e o Internacional de Poesia Arcipreste de Hita. Actualmente dirige as Edições Arquitrave e a Revista literária homónima(impressa e online). A sua obra encontra-se publicada em inglês, francês, grego, chinês, alemão e português.

Poemas de Harold Alvarado Tenório

HERANÇA

A única herança do meu pai
[disse Yusuf ibn al-Sayj al-Balawi]
foi uns enormes testículos.

Que grande legado, pensou,
que grande legado.

HERENCIA

La única herencia de mi padre
[dijo Yusuf ibn-Sayj al-Balawi]
fue unos grandes testículos.

Qué gran legado, pensó,
qué gran legado.

À MEMÓRIA DE RAUL GÓMES JATTIN

Não compreendeste as palavras
aqueles que conheceram a loucura
jamais cresceram nos braços dos deuses
jamais cantaram contra o infinito.

A LA MEMORIA DE RAÚL GÓMEZ JATTIN

No comprendiste las palabras
aquellos que conocieron la locura
jamás crecieron en brazos de los dioses
jamás cantaron contra el infinito.

MENORCA

Na desolação
o verão
é uma chaga branca.

Os homens abandonam
o campo e regressam
a casa sem rosto.

Apenas os anciãos recordam a luz:
a vida é extensão
uma imensa planície.

MENORCA

En la desolación
el verano
es una llaga blanca.

Los hombres abandonan
el campo y vuelven
a casa sin rostro


Sólo los ancianos recuerdan la luz:
la vida es extensión
una inmensa llanura.
In, Revista Sítio, Torres Vedras - 2006

Ensaio I


POESIA:
UM CALCULADOR DE IMPROBABILIDADES NA GUERRA DAS PALAVRAS

" A poesia não é nenhum instrumento,
nenhuma propaganda. A poesia nada
resolve. A poesia não é uma coisa útil.
A poesia é um mistério amável"
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Poesia (do gr. Poíesis, criação), derivando do verbo grego "poiéô", que significa fazer, criar, compor, este termo releva o âmbito original da função poética enquanto artefacto demiúrgico, isto é, associado ao mito genesíaco ou da criação do mundo. Por isso, os romanos chamaram "vate" ao poeta, aquele que, possuído das musas do Parnaso, participava na função divinatória outorgada por Apolo, o Deus da adivinhação ou do conhecimento dos caminhos futuros. Saliento que a poesia é mais do que a arte de fazer poemas, P. Ricoeur reinventa-a, na linha de Heidegger, como um acto primordial, isto é, ligado à criação original do ser(1)"La poésie égale l`habiter primordial; l`homme n`habite que lorsque les poétes sont". Eugénio de Andrade refere que(2)"o poeta procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência". Por sua vez, Eduardo Lourenço designando essa "suprema harmonia entre luz e sombra" como "cegueira luminosa" reconhece-lhe o "privilégio do poeta", relacionando-o com a representação de Homero como poeta cego. Já Jorge Luís Borges afirma(3)"É a palavra que renasce. E a palavra há-de renascer sempre. Assim como a poesia, porque a poesia será sempre uma coisa nova. Será sempre uma descoberta. Sempre estará ligada à paixão do homem". O poeta Herberto Helder afirma,(4)"A poesia tem um papel na cultura, como a matemática e a música. Ela estabelece talvez um plano original no mundo do pensamento e da imaginação, plano de síntese das forças espirituais, (...)a vida do ser humano sobre a terra. Considero que todas as formas expressas da imaginação se concluem na verdade poética". A poesia(marginal e/ou proscrita)inútil, forçosamente comprometida com a realidade(não com o real), em permanente procura de uma ponte para um mundo mais "claro", mesmo se isso implica a dor e/ou o silêncio da palavra. No poema,(5)"O poema", Herberto Helder afirma:

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sob ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

(...)
E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

Mas será que o papel da poesia, no início do século XXI não terá que ser e/ou ter um papel permanente de(6)"investigar, pesquisar, perscrutar - o que o mundo não tem/o que o mundo não diz/o que o mundo não é", como afirma a poeta Ana Hatherley. Neste espaço de "realidade" e quando se pensa para o mundo, não deverá a poesia(7)"questionar as estruturas consideradas de significado e/ou representação, de forma a que o irrepresentado(ou seria o irrepresentável) possa e deva ser trazido à luz ou, pelo menos ao "jogo" do claro e do escuro", como refere o poeta norte-americano Michael Palmer? A poesia ainda deverá corresponder ao apelo profético de defensora das grandes causas da "Humanidade", arrastando embora, as consequências fatídicas de uma maldição de deuses e homens. Terá que existir a vocação de uma poética da condição humana, mas necessariamente numa dialéctica e/ou confronto de poesia e de ideologia. Como refere o poeta norte-americano Charles Bernstein(8)"a poesia deverá ir ao encontro do que a ideologia coloca de fora, terá de abrir fendas, numa espécie de guerrilha". Mesmo que seja necessário auto-marginalizar-se, a poesia terá obrigatoriamente de cada vez mais tentar criar um espaço e/ou mundo transparente, numa permanente luta de sobrevivência. A poesia como dialéctica multidirecional e multivectorial, se necessário, transgredindo, ou provavelmente transgredindo obrigatoriamente, numa desconstrução permanente, de forma a reinventar e/ou construir de novo, sendo cada vez mais necessário, a poesia ir além do óbvio. Como afirma o poeta Henrik Nordbrandt, da Dinamarca, no poema (9)"Pragmático":

As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:
(...)
As primeiras recordam-me que exististe
as últimas que já não existes.

Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

Creio assim, de que cada vez mais é função da poesia testemunhar o seu tempo, num processo de interacção, conversação e provocação, mesmo que suportada num precário equilíbrio entre a ordem e o caos. A poesia terá de estar em permanente ruptura com o cânone estabelecido, na procura de contribuir para a criação de um espaço e/ou mundo transparente, embora nunca homogéneo. A poesia é maneável e fugidia, ela oferece delírio e ilusão. Oferece emoções por medida e encomenda. Um poema é capaz de tudo, já que a poesia tem uma paciência infinita, logo, cada vez mais a poesia tem de "falar com" e não "falar sobre". A poesia é o último reduto num mundo inimigo da palavra, principalmente da guerra que essas mesmas palavras podem efectuar ao "centro" e/ou cânones da sociedade e da linguagem. A consciência da representação artística como veiculo de subversão de imagens e valores estabelecidos, de figuras, temas e eventos histórico-sociais canonizados pelos discursos oficiais e dominantes e a sucessiva valorização da poesia como revelação do mundo ou de "um mundo", do devir do tempo e das transformações da sociedade, como um espécie de guerrilha, é um dado adquirido. Mesmo se, é o poeta a continuar a afirmar e a acreditar de que a poesia não serve para nada. A poesia nada resolve e no entanto o mundo não pode passar sem ela. Como refere o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, no poema(10)"Falar com coisas":

(...)
As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.

É certo, que continua a ser uma utopia, a ideia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia", mas, mesmo que numa pequena escala, a poesia terá cada vez mais de "tomar uma posição em função do acto de abrir fendas", numa permanente dialéctica multidirecionada e multivectorial. Urge fazer, reinventando outras visões do "mundo" e para isso é essencial a poesia, mesmo se assente numa forma extrema de exercer a ruptura, a marginalização, o político. Como escreve o poeta Charles Bernstein, no poema(11)"Noites de Buffalo":

O sono devora a sua recusa
em acessos de resignação insolúvel
ao desprezo do dia, ignorando
razões enquanto se abre caminho pelo soalho
ou se olha pela janela, pouco
histórias tagarelas sopram
espinhos para o pavor da manhã. Há
um novo dia, este é
passado, mas a madrugada não
surge à porta de cada
dever. Acredita que o que cantamos
nos canta, o toque de silêncio quando ela
cai - a demora corroendo a promessa.
João Rasteiro - 2005

NOTAS:
(1) -Paz,Olegário.Dicionário Breve de Termos Literários.Lisboa,Editorial Presença,1997,p.169
(2) -Andrade,Eugénio.Os afluentes do silêncio.Porto,Ed.Limiar,1979,p.36
(3) -Faria,Álvaro Alves de.BORGES o mesmo e o outro.São Paulo,Escrituras,2001,p.49
(4) -Revista Êxodo.Coimbra,1961,p.33
(5) -Helder,Herberto.Poesia Toda.Lisboa,Assírio&Alvim,1996,p.26
(6) -Hatherly,Ana.A casa das Musas.Lisboa,Editorial Estampa,1995,p.46
(7) -Bonvicino,Régis e Palmer,Michel.Candenciando-um-ning Um samba para o outro.S.Paulo,Ateliê Editorial,2001,p.148
(8) -Revista Crítica de Ciências Sociais nº47."Bernstein,Charles:A-poética".Coimbra,1997,p.103
(9) -Rosa do Mundo,2001 Poemas para o Futuro.2ºEd.,Lisboa,Assírio&Al-
vim,2001,p.507
(10) - NOVAS SELETAS.Neto,João Cabral de Melo - org. Luís R. Machado.
Rio Janeiro, Edição Nova Fronteira,2002,p.27
(11) - Poesia do Mundo I - org. Maria Irene R. Sousa Santos.Coimbra,Ed.
Afrontamento,1998,p.56
In, Revista entreletras, nº 9, Tomar - 2006

Critica I


Críticas, análises e comentários ao livro: “Os cílios maternos”, de João Rasteiro (Palimage, 2005):


Muito lhe agradeço a oferta do livro Os Cílios Maternos (…)Vou ler tudo. Parece-me um belo livro. Como exclamava o outro: “E eu que ainda não li todos os gregos!”.

Herberto Hélder – Poeta e ficcionista português

Muito obrigado pelo exemplar do seu livro que teve a amabilidade de me enviar. Ao agradecimento, gostaria de juntar palavras de felicitação pela alta qualidade da obra No essencial, partilho a perspectiva de Carlos Felipe Moisés, atentíssimo a esse fluxo contraditório que promove o reencontro dos dois aspectos da nossa realidade mais íntima, mas também da linguagem: a razão e o instinto ou a mente e a emoção. Creio que o título do livro descreve bem, em miniatura, todo o movimento dos poemas (ou do poema), que no fundo procuram as fontes da chama lalangue,a língua maternal nas nossas profundezas como um rio sob as rochas.

Luís Adriano Carlos – Poeta e Ensaísta português

Recebi o teu Os cílios maternos e irei ler com a demora que a boa poesia exige. Já pude perceber como evoluíste. Há no livro poemas bem arquitectados, máquinas de linguagem. A capa, confesso, não me agradou, mas o conteúdo, que é o que realmente importa, parece-me magnífico. Certamente logo estarás entre os grandes líricos da nova geração de poeta portugueses.

Andityas Soares de Moura – Poeta, Tradutor e Ensaísta Brasileiro

Grato pelo seu livro Os cílios maternos. A sua poesia aparece agora mais depurada e há versos emblemáticos e lindíssimos. Toco este com as mãos: De carícia em carícia o tronco original. Um belo livro.

Casimiro de Brito – Poeta, Escritor e Ensaísta. Presidente do PEN C.P.

Gracias por tu poesia, por la intensidade y los símbolos tan ricos que contiene. As veces, unos poços versos, um poema breve, como los tuyos, revelan sin más al poeta verdadero. Me acomparán en los próximos dias.

Antonio Colinas – Poeta, Tradutor e Ensaísta Espanhol.

Recebi e li este belo livro que me enviou. Uma poesia de absoluta qualidade. Há um grande salto dos primeiros poemas até este novo livro. Encantou-me. Um abraço poético.

Álvaro Alves de Faria – Poeta, Escritor e Ensaísta Brasileiro.

Agradeço-lhe muito o envio de Os Cílios Maternos. Estou a lê-lo com o maior interesse e não quero deixar de o felicitar pela interessante poesia que escreveu.

Fernando Guimarães – Poeta e Ensaísta Português.

Constituíram uma agradável surpresa estes “Cílios Maternos”, que a sua generosidade me fez chegar (…) nos seus poemas há, a par de uma evidente modernidade de dicção, um recorte a que, à falta de melhor termo, eu chamaria clássico, visível na tendência para uma certa isometria e na propensão para o vocabulário selecto. Muitos parabéns.

Albano Martins – Poeta, Ensaísta e Tradutor Português

O novo livro de João Rasteiro tem como tema central a própria poesia, enquanto linguagem fundante, que se destrói e se refaz a cada tentativa de atenuar a desumanidade que espreita a criatura humana, neste nosso “tempo de penúria”.

Carlos Felipe Moisés – Poeta, Ensaísta e Tradutor Brasileiro

Apenas duas palavras para lhe agradecer “Os Cílios Maternos”, que li com o prazer que o texto indubitavelmente convoca. O poema, como me parece dever ser considerado o sintagma global, evoca subtilíssimas sugestões eróticas que a polissemia da palavra tanto pode remeter para os “Cílios” primordiais da Natureza fecunda (“os favos de mel da idade inicial”) como para o mais íntimo do corpo. Aliás há neste canto cósmico e polifónico a ocorrência obsessiva e funcional de elementos do corpo (“corpo é o nome atravessado”), de modo a deixar marcas imprecisas na totalidade do corpus textual. Muitos parabéns, portanto.

Manuel Simões – Poeta e Ensaísta Português

Estava ansioso por ver o teu livro(…)Estamos juntos e fiquei orgulhoso. Os Cílios Maternos é rico de imagens, com curtas reflexões, mas com distâncias e tempos de boa meditação que diria até filosófica(…)A tua ideia de corpo, define-se por essências que nenhum material ou construção de gesto encontram em estojo ou regra para conter-nos em simples emoção, porque algo por ali se inaugura e abre caminho. Quem leu ficou “de carícia em carícia o tronco original”.

Fernando Lemos – Pintor, Fotógrafo e Poeta Português

Muito obrigado pelos seus cuidados(…)pelas palavras que inscreveu no seu “Os Cílios Maternos”(…)sendo um autor que verdadeiramente admiro. Para já, fica-me a sensação clara de que o João Rasteiro se está a libertar cada vez mais do supérfluo, inscrevendo em cada palavra um aceso foco problemático de grandes potencialidades poéticas. Torna-se às vezes um tanto difícil, como se a sua escrita se aventurasse um pouco mais de livro para livro, no túnel conceptual do nosso entendimento – porque afinal, como diz (e muito bem, e belamente), “ o sonho é o sonho da ausência”. Poesia de retorno à palavra nua, incandescente, à memória transfigurada(…)Parabéns.

Nuno de Figueiredo – Poeta e Ficcionista Português

Caríssimo, livro recebido e para fruir com calma e silêncio por dentro da noite como a boa poesia exige e merece. Grande abraço e parabéns pelo teu belo “Os Cílios Maternos”.

Luís Carlos Patraquim – Poeta e Guionista Moçambicano

Fiz uma primeira leitura e gostei, mas farei outras, pois há dois ou três poemas em que fiquei a pensar. Mais uma vez obrigado por este livro Os Cílios Maternos e parabéns.

Eduardo Pitta – Poeta, Crítico literário e Ensaísta Português

Recebi Os Cílios Maternos, agradeço e vou ler com calma e atenção assim que um tempo o permita. Numa primeira e rápida leitura, o apetite para o ler fica alvoroçado. Parabéns pela tua poesia.

Ana Paula Tavares – Poeta, Ficcionista e Ensaísta Angolana

Estou de acordo com o autor do posfácio quando refere o ímpeto fogoso, verdadeiro magma verbal [desta poesia](…) tem a poesia de J. R. alguma coisa a ver ou não com o surrealismo? Para mim, é óbvio que tem. Para além destes recursos de que se vale a poesia de João Rasteiro, refira-se ainda o emprego das palavras raras, tão do gosto dos simbolistas e do nosso Eugénio de Castro, em particular. Acrescente-se ainda a estes considerandos uma sinestesia: o sabor do peso de um som inicial onde se podem detectar, porventura, algumas reminiscências do Carlos de Oliveira de Micropaisagem. Cílios, palavra que figura no título acrescida do adjectivo maternos, fornecem, na opinião de Carlos Felipe Moisés, a matriz da métaphore obsédante (Mauron)(…)Cílios constitui o operador da purificação na sua qualidade de filtro e opõe-se, numa dialéctica da condição humana, ao apelo dos sentidos. O adjectivo nada mais faz do que reforçar esta acção de catarse subliminar, quer maternos se refira à mãe ou à terra ou à água, pois que é sempre uma alusão à receptiva feminilidade(…)É um livro onde se assumem os contrários de uma forma que me parece óbvia.(…) esta obra tem já a maturidade que o futuro afinará.

Luís Serrano – Poeta, Crítico literário e Tradutor Português

João Rasteiro demonstra na sua poesia que a pronúncia duma palavra nunca é um acto neutral, mas um acto politico, mesmo corporal. As partes do corpo humano encontram as suas semelhanças projectadas na natureza, em pedra, nas árvores: as palavras chegam a ser a carne, a fronteira entre a cultura, das pessoas e da natureza, desaparecem. O mundo inclui tudo, é um todo, na sua unidade inseparável onde não há o tempo anterior ou próximo, só a verticalidade parada.
Rita Dahl - poeta, ensaísta e tradutora Finlandesa(2007)

Quindi tocca a João Rasteiro, poeta portoghese di Coimbra che il primo giorno si era presentato a me a Cristina dicendo di collaborare con una rivista siciliana; lì per lì non l’avevo molto considerato ma la sua lettura mi colpisce in positivo, ha un suo stile, contaminazioni tra classicismo e avanguardia, ritmo e sfumature performative.

Alessandro Seri – Poeta, ensaísta e agente cultural Italiano (2007)

Poema I


O cântico das pragas
É das palavras ateadas
que irradia a morte soberana
os lugares sitiados a blasfémia do silêncio.
Todos morrem nas palavras disponíveis
apenas os corvos tristes
a quem soldaram o bico no fulgor da prata
suspendem astutamente a morte
no branco das túnicas da água visível.
É nesse espaço ancestral
onde antes iam os homens sedentos
alimentar a fractura das vísceras
bebendo de rastos com as cobras
que a chuva desaba geométrica
estilhaçando o alastro da garganta
que guarda as sílabas com aroma de tílias.

O homem está morto dentro do poema
como a linguagem das antigas escrituras
e é o seu corpo que brilha através do branco.
As cobras emergem do chão
abrigam-se dóceis nas túnicas álgidas
acercam-se do corpo do homem exposto
iluminadas em sua própria loucura.
Engolem os restos da carne corrompida
e inexplicavelmente poupam-lhe os olhos
depois saboreiam o que lhes vai consumir
para sempre a língua o coração das entranhas.

O segredo absoluto e divino do extermínio do verbo.
João Rasteiro