domingo, 10 de fevereiro de 2008

Prefácio ao livro "No Centro do arco

Em "A Respiração das Vértebras", primeiro livro do poeta João Rasteiro, finalizava-se com um pequeno passo de um outro texto, publicado na 1º série da revista "Oficina de Poesia", a cujo Conselho de Redacção o autor pertence. A "collage" foi identificada apenas por alguns, mas é o espírito que subjaz à utilização dessa técnica, bem como o contexto em que o trabalho se desenhou, que me importa aqui referir. Falo do diálogo que uma pequena comunidade poética vem a desenvolver há já cerca de 10 anos. João Rasteiro integra essa comunidade, criada no âmbito de um curso livre de Escrita Criativa (Oficina de Poesia) título que passou à revista, oferecido pela Universidade de Coimbra e dirigido por mim própria. A "sagrada" - autor/ia-autor/idade - constitui-se como uma espécie de núcleo temático do debate, num curso em que o individualismo "inspirado" e "genial" é não só questionável mas, quase sempre, também dispensável.
A consciência de que usamos como material as palavras da tribo e a certeza de que o nosso trabalho poético - que entendemos como trabalho de reinvenção - só faz sentido no seio da comunidade mais vasta, leva-nos a afirmar, com Robert Duncan, entre outros, que todos somos derivativos. O poema surge, assim, "ditado" pelas vozes que enchem a nossa experiência pessoal: as vozes da história e da cultura da tribo em que nos incluímos, as vozes de toda a evolução do universo em cujo movimento participamos, as vozes de toda a tradição literária de que fazemos parte (mesmo pelas vozes que aí rejeitamos) - mas também pelas vozes que fazem a insignificância(tão significativa) do nosso quotidiano, em que, para alguns de nós, existem as vozes de outros poetas com quem nos encontramos, semanalmente, para trabalhar em conjunto (e isso pode traduzir-se, por exemplo, em poemas escritos a várias mãos, em "collage" em variações sobre poemas de outros, etc).
O final de "A Respiração das Vértebras" surge assim também, de certo modo, no início deste novo livro de João Rasteiro: "No Centro do Arco" começa com duas epígrafes e uma delas é de Robert Duncan, tal como era de Robert Duncan aquele título do poema final no livro anterior,"A Grande Deusa", por mim, já antes, apropriado. Digamos que, no nosso diálogo semanal, certas obsessões se vão tornando centrais e que vejo, neste trabalho de Rasteiro, uma espécie de resposta às minhas próprias obsessões, que partilhei (para o bem e para o ma) ao longo de vários anos de estudo sobre o trabalho de um dos maiores poetas norte-americanos da segunda metade do século XX. Numa imagem de círculos concêntricos, a obra de Duncan é central, decerto inaugurando novos centros de movimento que, de forma complexa, se alargam, inter-agindo - com o italiano Salvatore Quasimodo, por exemplo, a quem pertence a segunda epígrafe a este livro.
As duas epígrafes remetem-nos, de imediato, para a unicidade entre a vida e a morte. No centro, entre as extremidades desse arco - e os ecos de "Bending the Bow" de Robert Duncan surgem bem claros - se colocará a voz do poeta deste livro, já duas vezes premiado na Itália de Quasimodo, com os poemas: "Enquanto o silêncio durar"(31),"Menção Honrosa", Concurso Internacional "Poesie Sulle Piastrelle", Zacem 2001;"A Dança das Mães" (41), Segnalazione di Merito", Concurso Internazionale "Publio Virgilio Marone", da Accademia Internazionale "Il Convivio", Castiglione de Sicília, Itália, 2003.

No centro de um arco situado no coração da terra, o corpo se erguerá em direcção à luz (da vida) e, nesse acto de encontro criador, amorosamente, irá criar a sua própria morte - a sua própria e repentina "noite",diz Quasimodo: dois raios de uma mesma luz, numa única promessa que é passado, presente e futuro.

Também como Duncan - e os românticos, em geral - João Rasteiro escolhe a metáfora da árvore como corpo representativo, devolvendo-nos, desde logo, a uma concepção de escrita que se pretende orgânica e física. A primeira secção do livro,"Tronco", procura a visível concretude do acto/corpo/poema. Logo no seu primeiro texto, deparamos com o divino hálito inspirador feito agora respiração humana, bafo nos dedos que agem sobre a palavra - acto nas linhas do arco. A escrita surge como acto de amor e vida, no tempo único entre caos e ordem, entre trevas e luz, trabalho realizado numa espécie de vigília que passa, do assombro, à "lucidez do corpo". Essa é a "nitidez" do processo, uma nitidez – uma forma/poema/corpo do poeta - "em constante mutação", como os dedos do autor/criador. A presença do corpo, a presença da pura materialidade que é a forma, surge como única e total presença do sagrado.
De resto, todo o vocabulário escolhido por Rasteiro se encontra eivado de uma profunda religiosidade, produzindo-se um efeito ritualístico, em que a voz do poeta nos capta, de forma encantatória, como uma voz de sacerdote, a voz daquele que encena o ritual. O tom conclusivo dos textos apresenta-se como uma espécie de catarse: uma espécie de momento de aprendizagem, de momento de iluminação, que se encena uma e outra vez. Por outro lado, este carácter repetitivo parece traduzir também o carácter físico do acto criador, num registo metafórico que nos traz, além da sensualidade, a própria sexualidade como princípio sagrado, presente em toda a natureza: no "sémen dos frutos" (19); no tronco que "avança decidido para o útero do fogo" (20), mergulhando na terra que "é fêmea" (21), no "desenho branco no odor da fêmea" (22), em "lume de cerejas de carícia em carícia"(24). Esta "embriaguez do verbo vegetal" (25) lembra-nos rituais dionisíacos e também o grande poeta do sagrado do amor e da embriaguez, Rumi (veja-se, por exemplo, o poema "Horizonte imediato" (22). Contudo, em Rasteiro, mais do que com a celebração deste amor e desta embriaguez, confrontamo-nos com um processo penoso de crescimento (que é também o da escrita), em que a perda dos sonhos e a procura da lucidez possível se vão desenhando em agonia difícil - por entre a manutenção dos opostos, mais do que por entre antíteses - e onde o poeta aprende "difícil (...) a arte do silêncio" (25). Trata-se de uma arte que se faz em luta - e o carácter agónico presente na metáfora do arco e da flecha assume aqui a sua verdadeira dimensão.
No poema "Círculo" (23), o poeta fala-nos da imensa crueldade deste movimento, desta luta, em que a abertura para uma nova imagem parece irromper violentamente dos membros, num espécie de parto que, como sabemos, para criar, destrói: "parte" a imagem/corpo de onde nasce, como se dois arcos (de vida, mas também de morte) se acoplassem para formar um só círculo. O início das duas primeiras estrofes faz-se pela negativa, bem marcada pela pausa:"Ninguém"; "Nada".Porém, a terceira estrofe inicia-se na plenitude: "Extensa". A morte paira e, perante essa sombra, o trabalho alquímico sobre as palavras manifesta-se no objectivo, sempre inatingível, de dizer toda a dimensão do real. A consciência da sombra leva ao desejo, às "palavras em fogo", mas o acto pela vida revela-se como um "suicídio calculado", no conhecimento de que toda a criação transporta a sua própria destruição. No último poema de "Tronco", "O sopro da língua" (28), o poema/corpo/tronco surge-nos como "arco do sopro/do som" e, nele, todas as forças da natureza - a linguagem incluída - se encontram, "a pulsação das sílabas sobre os pulsos abertos", para se reconhecerem como matéria desse mesmo corpo(numa irmandade que evoca S. Francisco), celebrando-se "num só corpo estendido/para uma silenciosa festa de irmãos".
Este silêncio é identificado como a raiz, sendo "Raízes", precisamente, o título da segunda secção da obra. É no silêncio que o poeta mergulha, como amante, dele extraindo alimento. Em "Círculo Total" (32) se fala dessa procura de alimento, numa espécie de pré-história do poema e do humano, em que o poeta se faz caçador, mas também nómada e peregrino - seguindo o trilho e o caminho da palavra, como sustento infinito. Este regresso ao arcaico, à raiz da civilização, mantém-se ao longo de toda esta segunda parte da obra. Nela encontramos o percurso humano: caçador (32), guerreiro (33), ferreiro e alquimista (33-34), trabalhando os metais na demanda da luz."Na lucidez do círculo" (35) parece descobrir-se a escrita, "um espaço onde se lêem linhas", que é "um espaço mutilado", onde encontramos, de novo, "o bafo do animal vacilante", a respiração humana - do selvagem/poeta que, na palavra, procura o fim do movimento: um sonho/sopro que termina calcinado pela própria luz/fogo que tanto deseja como absoluto. Esta parece ser a lucidez do círculo.
A água e a pedra acalmam este fogo, logo no poema que se segue, assim, de novo, se reconhecendo a unicidade divina e absoluta do tempo, do corpo e do sonho. Neste "lugar legível" (36), que adiante surgirá como "transpiração da terra", o poeta se alimenta (37). Quase poderíamos dizer que esta secção do livro é também sobre o cultivo, a(gri)cultura da palavra, que é também a terra e o corpo da amada. Nesta palavra/terra/amada, o poeta penetra, fazendo-se raiz, para daí se erguer como árvore. Daí, a necessidade do sulco do arado: a necessidade das linhas da escrita do poema. Há que macular o corpo da terra/linguagem/amada para poder sobreviver: esse é o pecado inevitável e a queda feliz - "e depois sentir-me capaz de caminhar no incêndio/enfeitado nas tranças da serpente"(40), diz o poeta. A imagem final desta segunda secção do livro deixa-nos, então, os dedos do poeta a soltar a flecha, uma flecha feita "borboletas" que, em vez de voarem para o alto, voam em direcção à terra, assim a fecundando.
Todo o trabalho de Rasteiro sobre a imagética nos faz pensar em metamorfose. Não se trata de sobreposição de contextos, mas de uma passagem sintáctica, extremamente subtil e veloz, que nos transporta de metáfora em metáfora, através de uma multiplicidade de contextos. Lidando com um léxico de enorme simplicidade, quase sem recurso a abstracções, o poeta consegue, assim, um trabalho em que a complexidade se traduz num excesso quase barroco, de onde emergem momentos de iluminação que, circularmente, se repetem.
Em "Folhagem", última secção do livro, as imagens de aves e de voo dominam. Entre as duas extremidades do arco, entre a vida e a morte, só o acto é libertador. Em última instância, só o movimento das folhas importa, só a flecha solta para uma qualquer direcção. No desejo, sempre a mesma ilusão - a ficção credível, que nos sustenta a vida, diria Wallace Stevens: a sua Suprema Ficção sendo a poesia. Rasteiro chama-lhe "a ilusão maior" (45), para onde há o infinito "retorno" (46). Esse é o "rito inesgotável" (49), em que a redenção se torna possível. Algo de arcaico, "teia dos velhos deuses", chama-lhe o poeta, para cobrir uma "ignorância originária".Sobre esse rito, sempre a mesma morte pairará mas, na consciência da lâmina, a vida continua a fazer-se:"as florestas respiram na planície do corpo".
O voo da árvore/poema/poeta é vertical (53), sempre em direcção à luz e à terra, sempre no centro do arco; o ciclo sempre a repetir-se na folhagem que "regressa eternamente/e forma pares imprevisíveis" (53) - e forma novas associações, e forma novas metáforas, poderíamos dizer.

O último poema de No Centro do Arco deixa-nos a dificuldade do caminho, "Sob o azul" (55), e uma árvore alquímica, imperfeitamente criada, na ilusão da permanência que é a permanência dos metais: em vez de ouro e luz, esta árvore é "bronze aceso como luz" e "ferro" que, porque criação humana, será "fulminante" para o seu criador. No entanto, esta árvore revela-se também como o novo hálito deste criador, "as suas mãos ávidas de boca" - a suprema ilusão da criação humana, sob o azul, no centro do arco. Esse é o lugar/tempo único que o poeta João Rasteiro conhece como seu. Essa a sua reconhecida ilusão, o seu único absoluto, a sua única promessa.
GRAÇA CAPINHA - Professora, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

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