domingo, 3 de fevereiro de 2008

Ensaio I


POESIA:
UM CALCULADOR DE IMPROBABILIDADES NA GUERRA DAS PALAVRAS

" A poesia não é nenhum instrumento,
nenhuma propaganda. A poesia nada
resolve. A poesia não é uma coisa útil.
A poesia é um mistério amável"
JOÃO CABRAL DE MELO NETO

Poesia (do gr. Poíesis, criação), derivando do verbo grego "poiéô", que significa fazer, criar, compor, este termo releva o âmbito original da função poética enquanto artefacto demiúrgico, isto é, associado ao mito genesíaco ou da criação do mundo. Por isso, os romanos chamaram "vate" ao poeta, aquele que, possuído das musas do Parnaso, participava na função divinatória outorgada por Apolo, o Deus da adivinhação ou do conhecimento dos caminhos futuros. Saliento que a poesia é mais do que a arte de fazer poemas, P. Ricoeur reinventa-a, na linha de Heidegger, como um acto primordial, isto é, ligado à criação original do ser(1)"La poésie égale l`habiter primordial; l`homme n`habite que lorsque les poétes sont". Eugénio de Andrade refere que(2)"o poeta procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência". Por sua vez, Eduardo Lourenço designando essa "suprema harmonia entre luz e sombra" como "cegueira luminosa" reconhece-lhe o "privilégio do poeta", relacionando-o com a representação de Homero como poeta cego. Já Jorge Luís Borges afirma(3)"É a palavra que renasce. E a palavra há-de renascer sempre. Assim como a poesia, porque a poesia será sempre uma coisa nova. Será sempre uma descoberta. Sempre estará ligada à paixão do homem". O poeta Herberto Helder afirma,(4)"A poesia tem um papel na cultura, como a matemática e a música. Ela estabelece talvez um plano original no mundo do pensamento e da imaginação, plano de síntese das forças espirituais, (...)a vida do ser humano sobre a terra. Considero que todas as formas expressas da imaginação se concluem na verdade poética". A poesia(marginal e/ou proscrita)inútil, forçosamente comprometida com a realidade(não com o real), em permanente procura de uma ponte para um mundo mais "claro", mesmo se isso implica a dor e/ou o silêncio da palavra. No poema,(5)"O poema", Herberto Helder afirma:

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sob ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

(...)
E o poema faz-se contra a carne e o tempo.

Mas será que o papel da poesia, no início do século XXI não terá que ser e/ou ter um papel permanente de(6)"investigar, pesquisar, perscrutar - o que o mundo não tem/o que o mundo não diz/o que o mundo não é", como afirma a poeta Ana Hatherley. Neste espaço de "realidade" e quando se pensa para o mundo, não deverá a poesia(7)"questionar as estruturas consideradas de significado e/ou representação, de forma a que o irrepresentado(ou seria o irrepresentável) possa e deva ser trazido à luz ou, pelo menos ao "jogo" do claro e do escuro", como refere o poeta norte-americano Michael Palmer? A poesia ainda deverá corresponder ao apelo profético de defensora das grandes causas da "Humanidade", arrastando embora, as consequências fatídicas de uma maldição de deuses e homens. Terá que existir a vocação de uma poética da condição humana, mas necessariamente numa dialéctica e/ou confronto de poesia e de ideologia. Como refere o poeta norte-americano Charles Bernstein(8)"a poesia deverá ir ao encontro do que a ideologia coloca de fora, terá de abrir fendas, numa espécie de guerrilha". Mesmo que seja necessário auto-marginalizar-se, a poesia terá obrigatoriamente de cada vez mais tentar criar um espaço e/ou mundo transparente, numa permanente luta de sobrevivência. A poesia como dialéctica multidirecional e multivectorial, se necessário, transgredindo, ou provavelmente transgredindo obrigatoriamente, numa desconstrução permanente, de forma a reinventar e/ou construir de novo, sendo cada vez mais necessário, a poesia ir além do óbvio. Como afirma o poeta Henrik Nordbrandt, da Dinamarca, no poema (9)"Pragmático":

As coisas que existiam antes de tu morreres
e as coisas que surgiram depois:
(...)
As primeiras recordam-me que exististe
as últimas que já não existes.

Que sejam quase indistinguíveis
é o mais difícil de suportar.

Creio assim, de que cada vez mais é função da poesia testemunhar o seu tempo, num processo de interacção, conversação e provocação, mesmo que suportada num precário equilíbrio entre a ordem e o caos. A poesia terá de estar em permanente ruptura com o cânone estabelecido, na procura de contribuir para a criação de um espaço e/ou mundo transparente, embora nunca homogéneo. A poesia é maneável e fugidia, ela oferece delírio e ilusão. Oferece emoções por medida e encomenda. Um poema é capaz de tudo, já que a poesia tem uma paciência infinita, logo, cada vez mais a poesia tem de "falar com" e não "falar sobre". A poesia é o último reduto num mundo inimigo da palavra, principalmente da guerra que essas mesmas palavras podem efectuar ao "centro" e/ou cânones da sociedade e da linguagem. A consciência da representação artística como veiculo de subversão de imagens e valores estabelecidos, de figuras, temas e eventos histórico-sociais canonizados pelos discursos oficiais e dominantes e a sucessiva valorização da poesia como revelação do mundo ou de "um mundo", do devir do tempo e das transformações da sociedade, como um espécie de guerrilha, é um dado adquirido. Mesmo se, é o poeta a continuar a afirmar e a acreditar de que a poesia não serve para nada. A poesia nada resolve e no entanto o mundo não pode passar sem ela. Como refere o poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto, no poema(10)"Falar com coisas":

(...)
As coisas, por detrás de nós,
exigem: falemos com elas,
mesmo quando nosso discurso
não consiga ser falar delas.

É certo, que continua a ser uma utopia, a ideia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia", mas, mesmo que numa pequena escala, a poesia terá cada vez mais de "tomar uma posição em função do acto de abrir fendas", numa permanente dialéctica multidirecionada e multivectorial. Urge fazer, reinventando outras visões do "mundo" e para isso é essencial a poesia, mesmo se assente numa forma extrema de exercer a ruptura, a marginalização, o político. Como escreve o poeta Charles Bernstein, no poema(11)"Noites de Buffalo":

O sono devora a sua recusa
em acessos de resignação insolúvel
ao desprezo do dia, ignorando
razões enquanto se abre caminho pelo soalho
ou se olha pela janela, pouco
histórias tagarelas sopram
espinhos para o pavor da manhã. Há
um novo dia, este é
passado, mas a madrugada não
surge à porta de cada
dever. Acredita que o que cantamos
nos canta, o toque de silêncio quando ela
cai - a demora corroendo a promessa.
João Rasteiro - 2005

NOTAS:
(1) -Paz,Olegário.Dicionário Breve de Termos Literários.Lisboa,Editorial Presença,1997,p.169
(2) -Andrade,Eugénio.Os afluentes do silêncio.Porto,Ed.Limiar,1979,p.36
(3) -Faria,Álvaro Alves de.BORGES o mesmo e o outro.São Paulo,Escrituras,2001,p.49
(4) -Revista Êxodo.Coimbra,1961,p.33
(5) -Helder,Herberto.Poesia Toda.Lisboa,Assírio&Alvim,1996,p.26
(6) -Hatherly,Ana.A casa das Musas.Lisboa,Editorial Estampa,1995,p.46
(7) -Bonvicino,Régis e Palmer,Michel.Candenciando-um-ning Um samba para o outro.S.Paulo,Ateliê Editorial,2001,p.148
(8) -Revista Crítica de Ciências Sociais nº47."Bernstein,Charles:A-poética".Coimbra,1997,p.103
(9) -Rosa do Mundo,2001 Poemas para o Futuro.2ºEd.,Lisboa,Assírio&Al-
vim,2001,p.507
(10) - NOVAS SELETAS.Neto,João Cabral de Melo - org. Luís R. Machado.
Rio Janeiro, Edição Nova Fronteira,2002,p.27
(11) - Poesia do Mundo I - org. Maria Irene R. Sousa Santos.Coimbra,Ed.
Afrontamento,1998,p.56
In, Revista entreletras, nº 9, Tomar - 2006

Sem comentários: