terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Recenções I

Graça Capinha e João Rasteiro
Gostaria de começar esta apresentação da primeira obra deste jovem autor, chamando a atenção para o seu título: Respiração das Vértebras. Porque é um título que tem que ver com uma grande tradição da escrita desde o início de um século que entretanto acabou, o século XX. Fala-se hoje muito da escrita do corpo e do corpo da escrita, mas foi a grande revolução modernista, de há precisamente um século atrás a grande responsável pela recuperação do corpo para a literatura. E a ruptura que isso significou não se deu apenas, e nem se quer de forma mais importante, ao nível dos paradigmas éticos ou morais. A ruptura mais importante deu-se e continua a dar-se, porque ainda não acabou e o seu desafio continua - ao nível dos paradigmas dominantes no próprio pensamento do século XX e deste agora nosso século XXI.
Qual é o corpo da escrita? Corpo humano e corpo da linguagem? Qual a natureza da sua materialidade? Qual a natureza da matéria humana que lhe dá forma? E ao pensamento forma? E ao pensamento transfigura? E nessa transfiguração, a nós próprios e à imagem do mundo nos faz irreconhecíveis?
Diz o poeta João Rasteiro, em Mutação (pp. 26-29):

1 (...)
a boca cheia do corpo
onde o coração se consome agachado e devagar
uma sincera cegueira
desde a respiração palpitante entre as bocas
e as guelras onde levita a carne.
(...)
3
Entrando pelas fendas, batendo, rebentando
nos brônquios a válvula do corpo
de um corpo de pedra em perda
prisioneiro de formas em que não cabe
polpa asfixiando o caroço
nas raízes doces do útero permissivo.
4
Onde o fogo lambe as cicatrizes
há um homem debaixo da pele.

Lia, há apenas alguns dias, com os meus alunos de poesia contemporânea, os poetas ingleses da Primeira Grande Guerra. Alguns daqueles que morreram nas trincheiras, questionavam - então de forma extrema(foi no século XX, e este não parece ir melhor...) - a questão da escrita e do corpo. Perguntavam-se pela escrita no corpo, aqueles soldados/poetas, perante a mutação humana das formas mutiladas. Perguntavam-se pelo melhor dos mundos que a modernidade lhes prometera e deixavam-nos quase sempre na entropia do silêncio ou na exigência do dever de ficar loucos."Só tenho as mãos à frente, entre o rosto e a fogueira", diz-nos Herberto Helder, numa das epígrafes que João Rasteiro escolheu para iniciar este livro. Estas são as mãos que escrevem, as mãos da escrita - que se queimam quando a fogueira se aproxima: a fogueira de um mundo (quase sempre em chamas, neste século ora terminado) que verdadeiramente nos leva ŕ criação: apenas o nosso mundo da matéria e do corpo - sem nada de metafísico. O fogo divino, tal como Nietzsche anunciava na sua morte de Deus, tem por força que se transformar num fogo meramente humano, na sua grandiosa insignificância - essa grandiosa insignificância que João Rasteiro escolheu celebrar.

Esta é a fogueira que mutila o corpo e que dolorosamente se inscreve na página, criando novas formas humanas (formas que se procuram mais verdadeiras) através dessa inscrição numa página que arde, pois essa é a página da nossa História. E é a linguagem no centro desta história que este livro interroga e questiona de forma agonista. Como diria um dos meus poetas favoritos, Robert Duncan: um livro que se constrói como uma larva dentro do seu casulo, lutando contra a própria matéria que lhe dá vida, para se libertar e nascer forma outra - uma borboleta."Rebentando os diques dos seus membros" (p.17),afirma Rasteiro - lutando contra o corpo da linguagem por uma linguagem que há-de por força ser outro corpo. Podemos ler em "Sobrevivência" (pp. 15-18):
1
uma quantidade de sopro e dor
apenas com a luz das suas feridas (...)
3
O canto que se perde nas searas da língua
a subtileza de desenhar promessas
rebentando os diques dos seus membros
desafiando a teia que inunda a nudez da carne
na hora inquieta da respiração suspensa. (...)

Um poema sobre a sobrevivência dura, agónica, que encontra o seu limite na forma que não dá mais de si: o fruto maduro. O mesmo limite que encontramos na secção 4 do mesmo poema, em estrofe de verso único:" A sobrevivência dura num gosto de ameixas maduras". Estamos perante uma poesia que se escreve nos limites, nos limites da criação (o fruto maduro) e nos limites da linguagem que a serve. Esta é a poesia inaugurada pelo modernismo no que o modernismo significou de questionação da própria modernidade: de questionação do sentido do moderno e do progresso. Este, o corpo da linguagem que se constitui como ruptura epistemológica, ainda impossíveis de conceber. Aí reside o limite e o agonismo, porque é uma luta a partir de dentro, uma luta pela imensa possibilidade em cuja margem nos damos conta existir:
"A Margem"
(...)
2
O vento bate nos ramos da margem
enquanto a pedra queimada no centro
anuncia as bagas
que rolam na ressaca cozida
em pêndulos e frágeis
a nudez e a cegueira
o mosto aberto do búzio encantado.
3
Até ao centro onde pulsa a margem
enredo a respiração sob os dedos ponteados
no búzio onde as constelações se incendeiam
ao sopro das pétalas repisadas
na cor moribunda dos frutos. (...)

Nascemos pois para a infinita possibilidade e não para a necessidade; nascemos apenas para uma mortalidade feliz em que o todo da criação permanece por terminar: o todo da criação onde tudo permanece incompleto - à espera da acção, à espera da participação individual na transformação da matéria, à espera desse acto gratuito que estabelece a relação entre os elementos, a relação entre as palavras, a relação entre os corpos. À espera, tão simplesmente, do princípio repetido e, por isso, co-primordial, de um acto de amor. Esta é uma poesia agonista e de limite, mas também, e simultaneamente, uma poesia em que o processo alquímico do estabelecimento de relações produz a transfiguração per-manente do mesmo e nisso se regozija, celebratória: respirando as vértebras. Como um recém nascido, que inspira pela primeira vez o ar e aí se reconhece corpo, fora do limite do ventre da mãe, entrando agora e apenas no limite de si próprio, no limite das suas próprias vértebras ao ar nos pulmões. Afirma o poeta, em "Respiração das Vértebras" (pp. 9-14):
1
No íntimo do caos
o corpo flutua no infinito desigual
dos últimos milénios
às vezes troca de morada
e na casca trémula da pedra
ensaia uma fuga abstracta
em volta do seu corpo
um poder feminino
o misterioso feminino que dizem ser
uma pequena concha imortal. (...)
4
No cerne do fogo na argila da criação
os corpos interrogam as coisas e emudecem
o deslumbramento do primeiro dia
o fascínio da descoberta sobre
um corpo intensamente só. (...)
6
Os corpos necessários no remoinho da garganta
desaparecem como floresta abatida
como a folhagem iluminada das antigas idades
a respiração duradoura e frágil
o salto imortal de uma miragem.

O salto imortal é o repetido salto para a eternidade do processo que é a vida, "respiração duradoura e frágil". As antigas idades recordam-nos, sugestivas, essa passagem do humano pela História, idades que são marcas do que já não está e que contudo permanece. E a garganta faz-se então o remoinho, metonímia do humano e da linguagem, lugar momentâneo e sôfrego querer engolir o mar que é todo da criação. O mesmo lugar momentâneo e sôfrego que é o corpo da paixão do Amante pelo corpo Amado. E o corpo do amante é o corpo do poeta, tal como o corpo da amada é o corpo da linguagem, a própria poesia. Aí o poeta/amante se dá vida, respira as vértebras e se transfigura: corpo de argila que vai cozendo em novo molde, até que adormece "como espiga madura e exausta", diz Rasteiro ("Presságio",p. 23).

Esta é a poesia do nosso século, a poesia que responde à nossa História onde as promessas de mundos perfeitos se goraram, onde o futuro parece ter falhado, sendo preciso reinventá-lo. Este, o mundo onde o poeta tem a responsabilidade de não perder a capacidade de resposta. Para tanto é preciso que os poetas sejam capazes de ousar ir à descoberta do ainda inconcebível, tal como João Rasteiro foi capaz de ousar. Por isso, necessariamente, vejo a poesia do nosso século como investigação epistemológica ou, se quisermos, como uma poesia que necessariamente deve voltar ao sentido etimológico de poiesis: fazer, construir. Urge fazer, reinventando, outras visões do mundo e para isso precisamos cada vez mais dos poetas: precisamos - desesperadamente, estou em crer - desta arte considerada tão inútil no mundo contemporâneo. A poesia será, nesse sentido, uma forma extrema de exercer o político e autores como João Rasteiro incluem-se claramente nessa tradição de demanda poética que nietzschianamente nos exige a felicidade sobre a terra. Assumir essa responsabilidade é uma tarefa difícil, que exige, tal como o poeta afirma, "feroz plenitude" e "rendição humilde", celebrando a forma grandiosa com que construímos catedrais - e cientes, como diria o grande poeta modernista norte-americano William Carlos Williams, no seu poema "Spring and All", de que entramos neste mundo nus, tendo como única certeza, assustadora, o nosso acto de entrada: a enorme dignidade de cada parto para dentro de um mundo de morte. Lembrando Williams, vejamos o poema "Obses- são" (p.42) de João Rasteiro, um poema que se constrói num jogo quase oximorónico com a rima interna:
Vejamos o seguinte poema:

o lugar do sono a maçã precipitada decapitada arqueja
ela o estendal do visível
barco em agonia dicotomia impune
um corpo de outro corpo natural
no orvalho paciente inocente sopro
que enrola vértebras fendidas
ressoando a morte sorte inspirada
em símbolos de feroz plenitude
obsessiva respiração a rendição humilde
alinhada no potencial do corpo
as vozes celebrando assustadoramente
como catedrais o seu próprio parto.

E gostava de terminar, olhando para o poema que encerra esta primeira obra do poeta. João Rasteiro termina com um texto sobre o linho: o linho antigo das toalhas dos partos e dos lençóis dos noivos, mas também, e por que não, o linho das mortalhas. Trata-se de um poema sobre esse tecido puro e fresco que nos aconchegava e nos acompanhava o corpo - que nos aconchegava e nos acompanhava a respiração das vértebras - nos seus momentos mais importantes: o nascimento, o amor e a morte. O tecido puro e fresco que, tal como o corpo, nasce cíclico do ventre materno e eternamente (pro)criador da terra:
"Agonia do linho"
1
No dorso inacessível da agonia
o gelo incendiado do remorso
coze as dores com o desejo
nas asas suaves do bafo mal abençoado
aguardando pacientemente em vigília
o pássaro que procura a infância.
2
A dança mágica dos gafanhotos
anuncia o pólen sedutor
em que o corpo nascido na véspera
se acende em lâminas por dentro
sem medo de enfrentar a serpente
que domina o silêncio da falésia.
3
A boca aberta respirando o canto das cinzas
talvez esconda o contorno do relâmpago
as pálpebras húmidas das inundas máscaras
onde a respiração das vértebras chega a prender
o desespero sobre as colinas do linho.
4
Na sedução do rosto onde ardem os lírios
no espelho em cuja solidão se vê o homem
um Deus reduziu a nada a memória que
por dentro do forro do linho se escoa.
5
Nos pomares cresce a mortalha do linho quebrado.
.
In, Capinha,Graça (*); Revista "OFICINA de POESIA"(Revista da palavra e da imagem),nº O - II SÉRIE – Coimbra - 2002
(*)Professora de literatura na Universidade de Coimbra, ensaísta e coordenadora da Oficina de Poesia - F.L.U.C./U.C.

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