segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Critica III

Luís Serrano
Os Cílios Maternos, de João Rasteiro - Luís Serrano
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Acaba João Rasteiro de publicar mais um livro de poesia, Os Cílios Maternos, desta vez com a etiqueta da Palimage; a capa deve a sua beleza a um acrílico sobre tela de Fernando Lemos.A obra vem acompanhada de um posfácio da autoria do escritor brasileiro Carlos Felipe Moisés que constitui uma leitura possível (e pedagógica, diria eu) desta obra. Mas outras (leituras) são possíveis e nisso reside grande parte do seu interesse.Se fizermos um rastreio das palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências não nos sobram dúvidas de que é, fundamentalmente, do corpo que aqui se fala e naturalmente dos sentidos e da sensualidade, corolário da relação masculino/feminino.Vejamos, pois, em primeiro lugar as palavras ligadas ao corpo com as respectivas frequências: artérias (1), boca(s) (8), carne (5), células (1), corpo (20), dedos (2), dentes (1), falange (1), garganta (1), língua(s) (2), músculo (2), pele (9),placenta (1), pulmões (4), rosto (2), sangue (4), sémen (2), tendões (3), veias (6), ventre (1), virilhas (3). Destas assumem especial relevância bocas, carne, pele, veias, vocábulos que nos remetem para um erotismo evidente.Das palavras ligadas ao que poderíamos chamar de os processos do corpo reteríamos cópula (2), fala (1), fluxo do sangue nas veias (1), germinam as crias (1), memória do corpo (1), olfacto (1) e respiração (3). São, pois, palavras ou conjuntos de palavras de sentido complementar às primeiras e também daqui se pode inferir a vertente erótica, quase obsessiva desta obra.Estou de acordo com o autor do posfácio quando refere o ímpeto fogoso, verdadeiro magma verbal [desta poesia]; já não entendo muito bem quando acrescenta: Pouco a ver, portanto, com a “escrita automática” ou o “ditado do inconsciente”, dos surrealistas, expediente com os quais o processo criador de João Rasteiro tem, ao menos à primeira leitura, forte afinidade […]. Afinal, tem a poesia de J. R. alguma coisa a ver ou não com o surrealismo? Para mim, é óbvio que tem. O próprio Carlos Felipe Moisés refere que o recurso ao insólito e às associações inusitadas comanda o fluxo ininterrupto de imagens […] (p. 45). E, de resto, qual é o poeta actual que pode, em consciência, dizer que não deve nada ao surrealismo? É preciso é ter consciência de que essa fase já passou, fez o seu tempo e deixou os seus frutos.Para além destes recursos de que se vale a poesia de João Rasteiro, refira-se ainda o emprego das palavras raras, tão do gosto dos simbolistas e do nosso Eugénio de Castro, em particular. Como exemplo, podem citar-se algumas palavras muito pouco comuns na linguagem quotidiana, quais sejam corla (p. 29), crísea (p. 25), gárgulas (p. 15) e lisérgicos (p. 26).Acrescente-se ainda a estes considerandos o emprego a p. 18 de uma sinestesia: o sabor do peso de um som inicial onde se podem detectar, porventura, algumas reminiscências do Carlos de Oliveira de Micropaisagem.Cílios, palavra que figura no título acrescida do adjectivo maternos, fornecem, na opinião de Carlos Felipe Moisés, a matriz da métaphore obsédante (Mauron).No meu modesto entendimento, cílios constitui o operador da purificação na sua qualidade de filtro e opõe-se, numa dialéctica da condição humana, ao apelo dos sentidos. O adjectivo nada mais faz do que reforçar esta acção de catarse subliminar, quer maternos se refira à mãe ou à terra ou à água, pois que é sempre uma alusão à receptiva feminilidade para citar uma vez mais o autor do posfácio.É um livro onde se assumem os contrários de uma forma que me parece óbvia. A este título, vejam-se os poemas da p. 13 ( Quando a floração do fogo dança / o verdadeiro sinal da água ecoa.), da p. 15 (Que o silêncio germine opaco / nas feridas cíclicas da noite / porque o sonho é o sonho da ausência.), este certamente um dos poemas mais belos da obra senão mesmo o mais bem conseguido, da p. 25 (É no fluxo negro de desertos acesos / que os corpos têm sonhos premonitórios / talvez esperando a cópula dos frutos.) e outros se poderiam citar.Diria a terminar, se algumas reservas se devessem apontar, que alguns poemas pecam talvez pelo facto do poeta não se ter eximido à explicitação demasiado frequente da comparativa como (14 vezes). Este emprego contraria o carácter elíptico que é tão próprio da linguagem poética.Aqui ou ali pode encontrar-se uma adjectivação de gosto duvidoso (placenta brilhante, por exemplo, que ainda por cima vai rimar com agonizante em rima cruzada, isto num livro onde se utiliza apenas o verso branco).Mas estas reservas (?) não são, de nenhum modo, muito significativas. Simplesmente, o autor destas linhas não ficaria de bem com a sua consciência se não apontasse aquilo que em seu entender é menor, até porque João Rasteiro poderá em obra futura corrigir tais pecadilhos.Os leitores ficam à espera porque esta obra tem já a maturidade que o futuro afinará.É, pelo menos essa, a minha convicção.
ARTES E LETRAS > Crítica Literária
O Primeiro de Janeiro - 2006

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