sábado, 2 de julho de 2011

"Tão importante que nem coisa é"

Discurso de agradecimento no dia 21 de Março de 2011 [Dia Mundial da Poesia] na Guarda, na Biblioteca Eduardo Lourenço, Sala Tempo e Poesia, na sessão Solene de Entrega do "Prémio Literário Manuel António Pina" ao meu livro "A Divina Pestilência".
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Ex.mo Sr. Presidente da Câmara Municipal da Guarda  
Poeta Manuel António Pina
Membros do júri
Poetas presentes
Minhas Senhoras e meus Senhores

Em primeiro lugar e acima de tudo, quero começar por exteriorizar a minha profunda alegria ao receber o Prémio Literário Manuel António Pina. Alegria pelo prémio em si e alegria por ter sido agraciado por esta Edilidade, pois trata-se de uma Edilidade que representa uma região onde pontuam nomes como Rui de Pina, Nuno de Montemor, Virgílio Ferreira, Eduardo Lourenço, Américo Rodrigues e Manuel António Pina, só para citar algumas figuras proeminentes da literatura e da cultura portuguesas.

Como podem imaginar, a atribuição do Prémio Literário Manuel António Pina faz com que me sinta extremamente honrado e reconhecido. Honrado não só pelo nome que o prémio ostenta e pelos seus membros do júri, mas também por se tratar de uma 1º Edição em que, tal como foi realçado pelo júri no comunicado de atribuição do prémio, a quantidade e qualidade das obras a concurso sublinham plenamente o reconhecimento literário de Manuel António Pina – hoje, sem dúvida, um dos mais importantes escritores portugueses, na sua criativa abrangência literária, que vai do teatro às crónicas ou da poesia à literatura infantil. Faço minhas as palavras de Eduardo Prado Coelho, no momento em que a Assírio & Alvim publicava a Poesia Reunida de Manuel António Pina: estamos em condições de poder afirmar que nos encontramos perante um dos grandes nomes da poesia portuguesa actual. Uma extrema delicadeza pessoal, uma discrição obsessiva, uma cultura ziguezagueante e desconcertante, mas sempre subtil e envolvente, um sentido profundo da complexidade da literatura, e também, sobretudo, da complexidade da vida, (…) uma obra maior da literatura portuguesa”.

Sim, só posso sentir-me honrado e agradecido – em muitos sentidos – pela atribuição deste prémio, para mais em sua primeira edição.

Podemos interrogar-nos – e muitos se interrogam – acerca da utilidade da poesia. Hoje, neste Dia Mundial da Poesia, e depois das mais recentes catástrofes das últimas semanas, acredito, mais do que nunca, que o papel social e político da poesia continua tão imprescindível como no momento do seu surgimento no ritual colectivo de que a comunidade, então como hoje, necessitava para sobreviver: para passar o conhecimento e reinventar o mundo.


Atrevo-me a tomar emprestado o texto de José Saramago ao receber o Nobel, para responder à permanente questionação acerca da legitimidade e/ou utilidade desta arte: não parece que os governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que moralmente estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra. A mesma esquizofrénica humanidade capaz de enviar instrumentos a um planeta para estudar a composição das suas rochas, assiste indiferente à morte de milhões de pessoas pela fome. Chega-se mais facilmente a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Alguém não anda a cumprir o seu dever. Não andam a cumpri-lo os governos, porque não sabem, porque não podem, ou porque não querem. Ou porque não lho permitem aquelas que efectivamente governam o mundo, as empresas multinacionais e pluricontinentais cujo poder, absolutamente não democrático, reduziu a quase nada o que ainda restava do ideal da democracia. Mas também não estão a cumprir o seu dever os cidadãos que somos.

Perante tais factos, que cada vez mais sentimos na carne, em todo o mundo e em especial aqui, neste lugar chamado Portugal, apetece mais uma vez perguntar e realçar: não é o poeta mais necessário do que nunca?

Todos sabemos que com a poesia não se mata a fome, que não se compra pão com palavras, nem se curam os males da humanidade ou se repõe a dignidade do ser humano. No entanto, se a proficuidade de uma realidade se analisar pela sua capacidade – de alguma forma inexplicável nos termos daqueles que perguntam – a sua capacidade, repito, de nos transformar mais em verdadeiros seres humanos, de nos facilitar crescer enquanto indivíduos, de conceder a possibilidade da nossa construção como criaturas livres, então, talvez possamos afirmar que a poesia se libertou também da sua condição de resíduo improfícuo que obstinadamente porfia em acumular-se nas prateleiras doiradas e brilhantes da literatura, da cultura e do mundo, ou dos mundos, em que vivemos, mas onde, por vezes, parecemos vegetar em meio do delírio consumista.

Para isso, cada vez mais, o estranhamento, as rupturas e o ininterrupto poiésis do verbo terão de desmentir a afirmação de Jean Cocteau, quando afirma que A poesia é uma religião sem esperança. A poesia é a prova provada da razoabilidade da esperança – já que é a poesia que nos permite reinventar o mundo, inaugurar novos espaços da existência humana futura – que não poderemos decerto, aqui, hoje, ainda sequer conceber. 

Quero realçar o facto de essa esperança, essa ruptura e esse estranhamento estarem hoje aqui também de uma outra forma: com a atribuição do prémio a este desconhecido poeta de Coimbra – um poeta fora do centro (geográfico, académico e editorial) da poesia da cultura oficial portuguesa.

Decerto o encorajamento do projecto a que estou ligado desde quase o seu início, há cerca de 14 anos, a Oficina de Poesia da FLUC (aqui representada pela sua coordenadora e fundadora, Prof. Dra. Graça Capinha) foi importante. Mesmo que após cerca de 14 anos de existência, 20 números da sua revista (onde já publicaram inéditos nomes como António Ramos Rosa, Ana Hatherly, Casimiro de Brito, Ana Luísa Amaral ou Adília Lopes, só para citar alguns nomes portugueses), mesmo que apesar de centenas de actividades pela “paisagem”, ou seja, fora de Lisboa e Porto (quer seja em leituras públicas, workshops, encontros de poetas, etc.), ainda hoje, este projecto não tenha qualquer visibilidade no centro literário de Portugal.

Mas reconhecimento é outra coisa e esse tem vindo dos locais e pessoas com quem se tem interagido ao longo deste percurso, uma vez que está longe das muralhas que guardam o Santo Graal do verbo canónico português – um percurso que, tal como no caso de muitos outros poetas portugueses, tem quase sempre ido do local ao transnacional, sem passar pelo nacional. Muitas vezes, e sobretudo, nas comunidades mais remotas onde tenho (com os meus colegas da Oficina de Poesia, ao longo destes já quase 14 anos) levado a minha voz poética; nas escolas, onde crianças descobrem o espanto do poema (e a experiência de Belgais nunca a poderei esquecer); nos bares e cafés onde alguém, distraído, repara/tropeça no som do poema e inaugura outra visão do mundo – mas também, muitas vezes, nos diálogos com poetas de outros países e outras línguas (e muitas vezes de outras culturas), na abertura das suas publicações ao meu trabalho e no seu reconhecimento dele através da tradução e pequenos prémios.

Esse tem sido também o meu percurso e, por isso, reafirmo uma vez mais o meu obrigado à Câmara Municipal da Guarda, mas sobretudo ao júri, pela escolha: não por escolherem uma obra minha (o que agradeço profundamente), mas sobretudo por escolherem o texto pelo texto, sem qualquer perturbação de ventos emanados de obscuridade poética lusíada.

Para que serve então a poesia? Ah, a poesia! Pois ela servirá sempre para as múltiplas utopias do ser humano, já que Os poemas virão inclusos// quando afluir o orvalho,// chegarão antes do pecado.

Como alguém já referiu, a poesia servirá para o mesmo fim que serve uma vaca no meio do passeio de uma complexa e agitada cidade: para alterar o percurso do nosso caminho, para interromper um hábito de estar calado, para provocar um estranhamento, para nos fazer ousar pensar, para nos resgatar do inferno que é viver todos os segundos sem um único assombro ou sonho, para nos livrar de andarmos sem escutar um único som verdadeiramente mágico – ou seja, para que seja possível ainda abrirmos os olhos e o coração, sem ter medo de viver escutando o ainda inconcebível. Se, ainda assim, se insistir em declarar que a poesia não serve para nada, só poderei contrapor o facto de que quase sempre é o nada, em sua extrema integridade, que nos dá o verdadeiro sentido da existência.

Como dizia Jorge de Sena: a poesia é a coisa mais importante do mundo, tão importante que nem coisa é. Obrigado.                      
                                                                      João Rasteiro

A Divina Pestilência




E se a razão em ti não for escassa,

   Verás que, enquanto a um vai por um lado,
  Ao outro pelo oposto o sol perpassa.

 Dante Alighieri  A Divina Comédia

Celio


1.

As aves já ressequiram.
Não haverá como fugir
aos olhos nus de Outono!

2.

Ambiciono o relâmpago nu.
Só o silêncio acorda a sílaba
e a desperta para a pestilência.

3.

O que for escrito do hálito
será cumprido – a dilecção
é a sua extensão mais pura.

4.

Quando o cio desmembrar
 as fábulas sobre os cortiços,
 entranharei a terra de paixão?

5.

Na efervescência das crias
as palavras como invasoras.
A crueldade como bálsamo.

6.

A matança é uma inferência,
nunca a criação permanecerá
 em sua aparente invisibilidade.

7.

Em vulcão de lava o verbo
 procura florir uma ímpar flor:
desabando inteiro sob a língua!
                      João Rasteiro

domingo, 6 de fevereiro de 2011

DIACRÍTICO



PREFÁCIO 

REDUZIR AO HUMANO O DIVINO
  
     Já o sabíamos: a poesia é, por definição, um acto criativo, e isso mesmo nos assegura o substantivo grego poiesis, que ao verbo poiein – "fazer", "criar" – foi buscar a raiz e a substância. É de criação que fala – que trata – o poema Diacrítico, de João Rasteiro. A diversos níveis, aliás. Como quando, por exemplo, ex contrario do que ensinam as gramáticas, o discurso começa com um ponto final, isto é, antes e não depois de encerrado o período. Como se, por desnecessário ou inútil, algo tivesse sido elidido, rasurado na página. Ou como se algo estivesse subentendido e o seu entendimento fosse confiado à sensibilidade e inteligência do leitor. Como suplemento ou, antes, como suprimento. Criação, também, pelas metamorfoses operadas no tecido verbal que subjaz à construção do poema. Criação, ainda, pelo uso alargado da metáfora e, sobretudo, da elipse, figura através da qual se engendram os desvios e as operações semânticas que conferem ao texto o seu estatuto de obra literária.

            O poema, cujo título remete para uma ordem de natureza gramatical ou simplesmente linguística (os diacríticos, ensinam os dicionários, são sinais distintivos do timbre de certas vogais), divide-se em duas partes, cada uma delas subdividida em igual número de capítulos que funcionam como estrofes e valem como segmentos dum macrotexto cujo sentido se vai, dir-se-á, organizando e esclarecendo por si mesmo. Empurrada por um vento que sopra do deserto, a linguagem carrega consigo algumas pétalas que vai deixando na página em branco. Portadoras dum sentido originário, genesíaco, as palavras abrem sulcos num terreno onde o significado se oferece pleno de potencialidades e sugestões, carimbando de decantada expressão o corpo do poema. Tudo, aqui, é alusão. Tudo é profecia, oráculo, metamorfose. Tudo é, também, delírio. A linguagem é, como se lê no capítulo XVII da segunda secção, a "das vísceras condenadas à ilusão do verbo". Daí, talvez, o "surreal canto" para o qual somos convocados no segmento XIII da segunda secção, "A ressurreição das crias", ou aquele "deslumbrante espaço irracional" a que nos transporta o capítulo XVI da mesma secção. Espaço onde o deus sob vários modos e disfarces convocado para a cena se escreve com minúscula – outra forma de ao humano reduzir o divino, que é, parece-me, o escopo de toda a arte.

                                        Vila Nova de Gaia, 21 de Agosto de 2010

                                                            Albano Martins
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VI
.e por amor liberalizou-se o crime e o sacrifício das fêmeas em seu útero. seguiram-se dias de bárbaras festas onde os machos dançaram o êxtase das bocas. os loucos saboreiam as primaveras eivados de lua cheia. desnudos estiraram tições em fogo sobre as fêmeas para consolarem as exigências da carne. após as orgias aguardaram mais crias junto ao coração onde ocultamente a divina criação se digladia. e a seguir surgiram todos os outros seres inimigos dos filhos de deus. todos eles fecundados à sua imagem no altar do caos. a terra tinha então sido assestada pelos frutos cognitivos. os escolhidos foram amparados pelo arcanjo de marfim fluindo como rosas de feroz plenitude. que se reproduzam na noite da sua castidade e transitem nomes de inevitável perplexidade. que apazigúem os sonhos da argila. debaixo do núcleo venerável das oliveiras uma serpente glauca adormeceu de cansaço.


 VIII
.a arte mais sublime de trespassar a morte é descansar num nevoeiro a arder de sangue. e mastigar a ferocidade das abismadas paisagens com a zoologia aberta do amor. na agonia da pura inocência. olhar o gume da lâmina prateada e amá-la exalando a sua boca atulhada em espaço lírico. no ventre suculento das algas. a renúncia do torpor é apenas a entrega incólume da candura e da vulva viva porque nos incutimos erectos. o fingimento que evoca a mulher sufocada nos ganchos quando o poeta faz de homem sábio. a magnólia cheirando a incesto nas palavras faustosas. cada golpe luminoso é a acutilante  pujança das orquídeas negras do nosso próprio eco. a exígua morte.

XIV
.tal como os fungos dos poços de Jerusalém a memória sagrada das tábuas  é uma crisálida indecisa. aquela que se perdeu para sempre no fundo inóspito do próprio ventre de bunho. e parte larva parte meretriz chegaram os novos seres para talhar as cidades em metálicos e encorpados pulmões de cobre. alguns homens que já só se arrastam conforme as ofídias que percorrem as cisternas em noites de lua cheia. o violento delírio de se verem reflectidos nos olhos da água. sob o nenúfar as suas escamas repousarão desinquietas pela última miragem. a outra face do pai que tecia argênteas teias de melancolia. é preciso recordar as prefigurações das trevas para se acolherem as metamorfoses. a benévola carícia. a ressurreição hodierna das crias. o eco colorido.


XVII
.as crias já não sobrevivem sob a voragem do sol. bendita a luz dos astros que fulmina a paixão curvilínea das camélias brancas. nas cidades só o mármore e as negras aves. e na linha sísmica da cidadela a linguagem do delíquio dispersa o olfacto de néon entre presa e predador. a incisiva mecânica dos seres sem voz. criador e criatura. homem e deus. o infindo eco do desvario. o eterno diacrítico da ilusão. a deflagração do corpo. pojo


                                            João Rasteiro

                                                             2010

quarta-feira, 26 de maio de 2010

A-POÉTICA

A poesia como guerrilha, ou formas fundamentais de fazer política, através da anti-poética:
Se os "media" transmitem as imagens como sendo neutras, apesar de essa pseudo-neutralidade em si mesmo, já ser uma tomada de posição, na poesia e/ou literatura, não há, ou não deveria haver, neutralidade na ideologia. Fingir que se é neutro ou não militante, "é uma forma, por demais recorrente, de mistificação e má fé", que naturalmente, apenas pretende reforçar a autoridade das nossas convicções. A poesia deverá ser sempre a aversão à conformidade, na procura de uma dinâmica formal (em permanente processo e imediata fuga à regra), de modo que adequando e adequando-nos às diferenças, possamos começar a respirar mais profundamente. As formas de representação cultural, na sua diversidade, são as que começam por aceitar o modelo (formal) de representação da cultura dominante, daí que a poesia deverá fazer com que "seja possível ouvir sons que, de outro modo, nunca seriam articulados". Na perspectiva de Charles Bernstein (1), a linguagem poética tem de ter acção, tem de intervir, sendo que se paga um alto preço por se estar mais disposto a representar, do que a actuar, daí ser natural que o que a poesia trabalha é mais importante do que o que a poesia diz. É nesse contexto que se deverá entender o poema do poeta norte-americano, Michael Franco (2), com o irónico título,"Ensaio”:

cada raiz enterrada entoa
"percurso"
cada vereda tomada, de igual modo uma decisão de movimento
e na acção
segue propõe ou
sufoca:

"está morto"
Para muitos o espectro de cada palavra o ser
De mais a tolerar a
um corpo
de poesia.

Neste processo intransponível de globalização, em que a cultura americana determina os modelos culturais que se tornam dominantes no mundo Ocidental, Bernstein realça a questão do poder da linguagem, preconizando que a poesia terá que ir ao encontro do que a ideologia coloca fora da linguagem (essencialmente o que está reprovado pela sociedade), tentando encontrar formas outras, como discurso epistemológico, que nos liberta ou arremessa para um sopro imaginário. Para isso, a poesia terá que abrir fendas, numa espécie de guerrilha (até porque não haverá poesia fora da ideologia), o importante será escrever poesia, numa lógica aberta do poema, que incluirá toda a multiplicidade de valores e toda a pluralidade da linguagem.
Ironicamente, Bernstein (3) espera que "a poesia deve ser pelo menos tão interessante como a televisão e bastante mais surpreendente", já que a televisão mostra uma imagem disreal do real e a poesia terá que mostrar o real do disreal”. A poesia como guerrilha, como inovação e diversidade, como aceitação de diferenças e aprendendo técnicas e instrumentos alternativos, para entender e mostrar a realidade, como forma de alterar os mapas do senso comum, esperando que esse texto poético seja reflexo de uma relação intrínseca da poesia com a comunidade e proceda de forma a que as transformações se materializem corpus alternativo, um corpus metamorfoseador, um corpus outro. É nesta dialéctica e/ou confronto da poesia e de ideologia, que é preciso agir, sem retrocessos ou temores, mesmo que o mundo e a poesia, seja um permanente jogo de estratégias, uma vez que não existem padrões comuns e tudo depende do contexto. A poeta canadiana, Nicole Brossard (4) afirma:

de manhã devemos transcrever
no computador ser comportada
o mundo mudou
cada um agarra a sua faca
à altura dos olhos
comendo frutos
em frente ao ecrã
é inútil gritar
o sinal repete-se
a paisagem muda
outras metáforas
a guerra branqueia os ossos
é claro que existe o sujeito
a intrigante sensação de viver
no meio de uma multidão de palavras
densidade muito urbana
de histórias e secreções

É de realçar, um factor importantíssimo, e que é o facto de o poeta, independentemente do "autor", também ser um ser humano, logo, ter o direito, ou diria até, o dever, de exprimir os seus amores, ódios, simpatias, antipatias, crenças, sonhos, imaginação, intuição e inclusive a sua razão mais íntima. Na actualidade, há uma gustação negativa, um certo desprestigio pela poesia, dita "politica" ou social, mas, o que está em causa é a capacidade de tratar determinado tema, pois pode-se fazer boa poesia com temas políticos e/ou sociais e má poesia com temas considerados "poéticos" ou "líricos". A poesia deverá ter ideologia, o que não pressupõe necessariamente ser ideológica.
Hoje em dia, ela não se pode demarcar mais da realidade, terá que ser uma "voz pública" ainda que em processo de "ventrícolismo", de forma que a poesia terá que entrar "como interacção, conversação e provocação” (mas, desejando a reciprocidade).
Como expõe Flo Amber (5), "se um cisne cantasse, não saberíamos da insistência com que diria". Mas nós não somos cisnes, pelo menos a maioria de nós não é – e não temos por isso qualquer desculpa.
O poeta Herberto Helder assevera (6):
Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.
Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
(…)
— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.


Estamos de acordo, que não existem padrões de estética e cultura universal, daí, ser essencial que todos nós consigamos ultrapassar a ideia de que podemos todos falar uns com os outros, a ideia de que "todos nós podemos falar uns com os outros com a voz universal da poesia". Tal, é uma utopia, uma vez que, só será possível ouvirmo-nos uns aos outros, quando todos aceitar-mos, este indesmentível facto. Para isso é necessário trabalhar numa pequena escala, mas actuando em vez de representar, numa procura de inovações formais que desafiem os padrões dominantes, por vezes suportadas em pequenos detalhes que fazem a diferença, uma vez que o importante é, sem dúvida, agir e trabalhar o que se diz, numa permanente ruptura e não em meras substituições, incessantemente, através de um modelo agonista de linguagem.
É preciso sentirmo-nos estrangeiros e não donos da nossa própria linguagem, a poesia terá que estilhaçar as formas de representação da sociedade, colocando-se para além da própria marginalização, num processo permanente de ruptura com as ideologias, inclusivamente, ao nível das ideologias poéticas e literárias.
Como afirma também Bernstein (7), "as convenções, ao serem provisórias em vez de eternas, foram feitas para serem quebradas", e a poesia deverá começar pela ruptura das próprias convenções da escrita, de forma a penetrar, sobretudo, a invadir a política da linguagem. Refere ainda Bernstein, que é necessário fugir a todas as formas reconhecíveis de linguagem, principalmente em termos de sintaxe, daí ironizar muitas vezes com a própria forma ensaística.
Alega o poeta norte-americano Michael Palmer (8):

reflectir, claro, sua mão sobre o papel
é o exercício mais baixo
que permite seguir
uma redução geográfica
eles esperavam ser percebidos


O processo de ruptura criado pela rejeição dos valores instituídos, contribuirá forçosamente, para uma necessária mudança de atitudes e do cânone instituído, daí a própria inovação poder ser pensada, em termos sociais, e não apenas ao nível estrutural, ou seja, como defende Bernstein (9), – "a ruptura do discurso patriarcal, pode ler-se tanto em termos de política, racial e sexual, como em termos de inovação estrutural no abstracto". A poesia terá cada vez mais de ser uma "voz" em ebulição, que actue fortemente como se fosse sempre uma oportunidade única.
O poeta norte-americano Robert Duncan (10), no poema "Raízes e Ramos" afirma:

Só existe o tempo único.
Só existe o Deus único.
Só existe a promessa única,
e da sua chama
e das margens da página todos se incendeiam.
Só existe a página única,
o resto fica,
em cinzas. Só existem
o continente único, o mar único –
entrando pelas fendas, batendo, rebentando
correndo de lado a lado.

Mas se na "Poética" de Aristóteles, se defende um saber feito de fazer, baseado na revalorização do concreto, procurando imitar através do real o que ainda não se viu, em contínua procura da uma reedificação do corpo poético, na A-Poética, Bernstein (11), sabendo que as formas convencionais de representação, condicionam a própria representação de utopia, ou seja, não é possível pensar o mundo fora da sociedade e as suas formas de representação. Pois só através do objectivo patético e cómico, tal poderá ser possível (valorizando o absurdo como ruptura). Assim, num feroz método de tudo amalgamar, visando, por vezes de forma obsessiva, o objectivo de destruir a centralidade da narrativa, da nossa própria narrativa dominante, num processo de "estar entre", entre todos os vectores (do qual todos somos parte integrante), determinará então, sempre, um processo de ruptura e não transformando apenas, através da produção da imitação, como preconiza de forma substantiva, a "Poética" de Aristóteles. Veja-se o poema do poeta Brasileiro Wilmar Silva, do livro “anu” (12):

riomarnoiteinteriordasgraiz
euanuavesoubichonasenda
(…)
ninchodgravetofelndiaviés
véundavausíndigodobrasil
triçaentrioandorinhasanu

Mas, este processo terá que ser permanente (o mito sobre o mito), o novo mito será convenção, para poder ser também estilhaçada por outro mito que será convenção, que será convenção e estilhaçada, num ciclo infinito. Afirma Bernstein (13), que "a desfiguração é um pré-requisito necessário à reconfiguração, à regeneração da capacidade de figurar – de calcular – de pensar figurativamente, tropicalmente", reforça ele. E se de alguma forma, tudo é relativo, é no entanto necessário "tomar uma posição em função de", porque não é relativo, como sinónimo de tanto faz, daí o interesse pela poética e pela forma poética, como "forma" fundamental de fazer político e transformação do mundo. A “transformação eminente”, como refere Herberto Helder, pois a escrita da metamorfose é a caligrafia em que a acto do poeta, transforma o próprio acto de transformar.
Charles Bernstein, no seu livro “Histórias de Guerra” (14), afirma:

a política num poema tem a ver
com o como ele penetra o mundo
(…)
a guerra é um poema que está aflito com sua sombra
e furioso em seu curso.

Em sua “Geopoesis das Margens”, a poesia buscando “os sentidos outros” em ininterrupta e apocalíptica guerrilha, contra a “conspiração do silêncio”, como refere Graça Capinha, procurando o desequilíbrio nas múltiplas vozes que explodem na sua desmesurada e profunda diversidade. A poesia como um maravilhoso oceano agonista.
São urgentes soluções, e neste percurso é crucial activar o potencial poético para toda a gente, não interessando a quantidade ou mesmo serem lidos, como afirma Bernstein, a árvore não necessita obrigatoriamente de ter alguém debaixo dos ramos à sombra, mas se precisarem, a sombra está lá. Sem hesitação, Bernstein (15), deseja que "o barulho social seja um som que a poesia pode não só fazer, como também ecoar e ressoar" de forma avassaladora e perturbadora. A poesia, como dialéctica multi-direcionada e multi-vectorial, até porque o essencial é "agarrar" os sons que nós próprios ouvimos. Até porque como refere, “é sempre a margem que define o centro”.
Citando o poeta Mário Cesariny de Vasconcelos (16):

Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos a morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
(...)
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar.

Notas:

(1) (3) (4) (7) (9) (11) (13) (15): Revista Crítica de Ciências Sociais nº47, "Os poetas e o social", 1997,Coimbra·
(2): Poesia do Mundo 2; Org. Maria Irene Ramalho, Poesia Afrontamento, 1998,
Stª Maria da Feira.
(5): Rosa do Mundo, 2001 Poemas para o Futuro; 2º Ed., 2001, Assírio & Alvim, Lisboa

(6): Helder, Herberto; "Poesia Toda", Assírio & Alvim, Lisboa, 1981.(8): Bonvicino, Régis;Palmer,Michael;"Cadenciando-um-Ning,Um Samba Para o Outro",1ºEd.,2001,Ateliê Editorial, S.Paulo-Brasil (10): Helder, Herberto;"Poesia Toda", 1ºEd.,Assírio & Alvim, Lisboa, 1996.

(12): Silva, Wilmar; “anu”, Confraria do Vento, Brasil, 2008

(14) Bernstein, Charles; Histórias de Guerra, Martins Fontes, Brasil, 2008.(16): Vasconcelos, Mário Cesariny de; "Pena Capital”, 3º Edição, Assírio&Alvim,
Lisboa, 2001

João Rasteiro

domingo, 2 de maio de 2010

O tempo da Poesia

O tempo no tempo do poema
(Base da intervenção de João Rasteiro na IV Bienal de Poesia de Silves)

“ (…) Correr a mão / pelo corpo que tens em temposquedos, / deixá-la ir pelos agostos fartos / pelas horas deceifas e de verão. / Deixar que a tua pele me guie os dedos /para chegar aos olhos e fechar-tos”
Pedro Tamen

Se de alguma forma podemos afirmar ser “função” da poesia, se é que deverá ter alguma função, entre outras coisas, a produção do real ou quotidiano, a configuração da instigação ou persuasão e encantamento, a ininterrupta adequação entre meios e fins, um projecto cultural ou estético e ético, etc. (embora todos estes parâmetros se possam valorizar mais ou menos em função do contexto) e, ainda que seja recorrente a afirmação bastante conhecida de Shelley na sua “Defesa da Poesia” (1821): Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo, hoje, a criação poética cada vez mais se vê (ou deveria ver) reduzida àquilo que Hugo Friedrich chama "dissonâncias", "anormalidades" e "categorias negativas".
O poeta norte-americano Robert Creeley tem um poema que coopera na configuração do papel da poesia hoje: Penso que cultivo tensões / como flores / num bosque onde / ninguém vai...". Aí, está o lugar da poesia e do poeta: bosque / mundo "onde ninguém vai”. Pressões e tensões em ebulição. Portanto, há dois movimentos distintos e complementares que levam a poesia para uma situação extrema: o movimento do mundo real, que a expulsa de seu círculo, e o movimento de cada poeta — que, ao "cultivar" tensões, distancia a poesia do espaço comum das realidades deste mundo.
Pedro Tamen assevera: Suspendo a mão entre o A e o B, / entre a minha vida e a vida que andará / dentro da minha vida.
A vida dentro da vida, o tempo dentro do poema, o tempo que revela quase sempre a visão particular do mundo, ou dos mundos do poeta e a sua atitude perante a problemática que envolve o ser humano. O tempo no tempo do poema é espaço aberto, no qual o poeta concretiza a sua visão da vida e a imagem do espaço que o alimenta e destrói, o tempo onde se reassume a função originária de baptizar os signos do mundo. Como afirmou Roman Ingarden, em A obra de arte literária, esta, não constitui um feixe de elementos justapostos, mas uma construção orgânica, cuja uniformidade se baseia exactamente na peculiaridade dos estratos singulares. Os estratos são heterogéneos, combinam-se entre si, têm características particulares, garantindo a unidade do todo. E é no tempo do poema, que o poeta enraizado em seus peculiares e singulares tentáculos, intenta e arrisca fazer uma fusão entre o plano da vida coabitada e o plano da vida criada, num tempo outro, num sonho outro. A caverna, onde a poesia e a sílaba acesa se direccionam para o sentido profético do “verbo-milagre”, que tem o poder de acarretar à vida, ao explosivo campo da linguagem, qualidades metafísicas da morte e, ao mesmo tempo, revelá-las em seu esplendor de vida. Um tempo sem alicerces e sem inquietude quanto à falta de alicerces, pois talvez isto seja o que a poesia era antes de a começarmos a metamorfosear. O poeta Herberto Helder profere apocalipticamente: Um poema cresce inseguramente / na confusão da carne, / (…) E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. / E já nenhum poder destrói o poema. / (…) — Em baixo o instrumento perplexo ignora / a espinha do mistério. / — E o poema faz-se contra o tempo e a carne.
O poema e a poesia deverão imperiosamente criar o seu próprio tempo, pois se não o fizerem, não estaremos perante poesia, mas perante uma outra qualquer forma ou estrutura de linguagem. O poema e a poesia fugindo do tempo linear em que assenta a força motriz do mundo, ou dos “mundos” (que aparentemente representam o real, mesmo se estivermos ante a denominada “poesia do quotidiano”) impondo de forma absoluta o seu próprio mágico e doloroso labirinto.
Profere T. S. Elliot, nesse fabuloso livro que se chama “Quatro Quartetos”: Ou seja, que o fim precede o princípio / E que o fim e o princípio sempre estiveram lá / Antes do princípio e depois do fim.“
Ou seja”, não deverão poesia e poema, abertos e subtis em seu permanente jogo de contrários, nessa imprevisível dialéctica entre espaço e tempo (o tempo fora do tempo e dos tempos) possibilitar as cúpulas para uma leitura outra (porque um tempo outro) do “mundo” ou dos “mundos”, em que quase sempre julgamos ilusoriamente ser deuses capazes do inefável, capazes de navegar o tempo inexplicável da intemporalidade?
O tempo da poesia, o tempo do poema, o tempo funcionando sempre, em cada momento único, como o descentramento da fortuita realidade em seu e nosso infinito labirinto.
Na eterna errância do poeta em direcção à morte, o que mais importará será a viagem, o trajecto, o longo trilho da memória sob o orvalho, o tempo dentro do tempo – o verbo corpo de linguagem. Infinita. Sempre aberta à imaginação, à sagrada ilusão da sílaba, o caminho outro, a consciência de uma particular visão do mundo derivado de um tempo próprio e único, como se a criação poética pudesse ser a brutal fonte da lucidez que brota da ilusão justificada – a verdade, essa ficará para os deuses.
Pois mesmo em poetas como, Homero, Dante, Shakespeare, Camões, Rimbaud, Withman, Baudelaire, F. Pessoa, Elliot, Pound, Yeats, Lorca, H. Hélder e outros, o tempo da poesia é apenas a concentração absoluta e pura da vida e da morte em sua trágica e divina ilusão, o carnal corpo da linguagem sempre exposto à ilusão do tempo e à absurda alucinação da metáfora. A peregrinação. A viagem com fim marcado.
Samuel Beckett não tem dúvidas quando pronuncia: Que faria eu sem este mundo sem rosto sem questões / Quando o ser só dura um instante onde cada instante / Se deita sobre o vazio dentro do esquecimento de ter sido.
O sentido e a rota inexorável do futuro estará sempre inscrita no que fazemos no presente. E é por isso, que é essencial fabricar-se uma perspectiva em que o tempo do poema terá que ser o centro em que se gerará a ideia de um tempo outro. Um tempo em que não exista tempo fora dos desejos dos sonhos e da memória. Onde talvez não exista sequer tempo fora dos signos que se sobrepõem aos sonhos e utopia que os invocam. Mas terá que ser forçosamente o tempo do poema, da poesia, a contradizer em seu habitat, em seu sopro de tempo, tal condição. É esse tempo que se apelidará de “tempo da poesia”. O tempo em que como diz Fernando Pessoa: Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas… / Que já têm a forma do nosso corpo…/ E esquecer os nossos caminhos que nos levam sempre / aos mesmos lugares.
O sentimento de um tempo, o tempo do canto feroz, onde a cilada e a cólera, a espera e o desespero, nascem dessa perspectiva de campo de fantasia, do lugar outro – a poesia!
Logo, não admira, que essa busca insana de imortalidade, de intemporalidade, nos iluda, mais ou menos consoante a dialéctica entre o espaço e o tempo, dependendo da forma com que neles nos representamos, tendo em conta a percepção da finita existência do verbo e da memória. Apesar da permanente ilusão de permanência no tempo do poema.
Pois é lá, na beleza do caos, no tudo que é nada, que a eternidade poderá iludir-se que acontece. Mas na verdade, o tempo do poema terá que continuar a ser o leito sagrado onde o poeta tecerá a urdidura que permitirá sonhar um mundo outro, um lugar outro, fabricando o linho ou a mortalha que concederá o sentimento continuado de ser omnipotente. E será esta urdidura no tempo do poema, que sustentará o leito mortífero do tempo. A poesia em sua harmoniosa e fatídica plenitude. A morte como alimento de vida. A poesia como língua-milagre em seu espaço aberto, capaz de transfigurar e metamorfosear a realidade e veracidade do homem, pois ela, como referiu Octávio Paz, é um “tempo revelado”, ou seja, a “enigmática transparência” do sopro incandescente. Pois, Não será o medo da loucura / que nos forçará a pôr a meia-haste / a bandeira da imaginação – André Breton,”Primeiro Manifesto Surrealista”, uma vez que como canta Pedro Tamen: A minha desforra são palavras / Levanto-me de manhã amarrotado / pelo peso inclemente das mentiras / e vazo no real outro real / das letras que ninguém vislumbrará.
João Rasteiro, Silves, 25/04/2010

quinta-feira, 18 de junho de 2009

O Amor; carne e desejo: vida!


........................I
As madrugadas esculpidas

1.
este era o coração esculpido da chama
compartida no lume reaberto da espiral
profanada no gesto obsceno da lâmina
sobre a linha transparente das águas,

no útero da madrugada os espasmos
da finitude das veias que não cessam
como se de pedra negra o amor inicial.


10.
no esplendor absoluto do silêncio
dobrado o lume sobre lágrimas
amadurecidas veias sobre o nome
Inês que traça o seu próprio curso,

eis o crepitar acelerado do assombro
fincado ao centro o êmbolo puro
que quis decifrar o destino da sílaba.


20.
na noite profunda dormem desvelados
os corpos uníssonos na unidade mítica
coroação descascada em uivos densos
atravessados reflexos dos ventos alísios,

o corpo sôfrego do amor sobre a terra
fechada a paisagem obstinada acocorada
na miragem das raízes a boca de Pedro.

24.
para acender outra vez aqueles olhos
de lava as águas fecundas do Mondego
sublimam a distância fronteira do golpe
cru o espectro entre as paixões da carne,

a memória álgida no excesso das artérias
filiais as bocas no odre do sangue antigo
com uma serpente felina no vigor do aço.

........................II

...........Pedro e Inês

Na combustão de Inês a cânfora.como se
sob a oxidação da luz o cordão umbilical.
agora o amor prefigura-nos melhor sobre
as águas.as ardósias da fonte continuam
desencarnadas nos golfos do crime.elas as
águas ainda na exactidão enregelada das
lâminas.nos veios cintilantes da nua sílaba
o poema.ingreme no equilíbrio do sangue
a fulguração do fogo.inteiramente vencido
nas mãos do assombro.aí sob os líquidos a
clara magnólia inteira.a ferida ainda fresca.

In, Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas - 2009

Pedro e Inês ou As madrugadas esculpidas

ASSOMBRO LÚCIDO, PALAVRAS INDEFESAS


1. Eis-nos perante nova manifestação da poesia de João Rasteiro, que, num trajecto de maturidade já provada, não se pode configurar nem dar a ler sem alguma convocação palimpséstica dos legados do Modernismo orfaico e do Neo-Modernismo que o refracta na charneira do século XX.
Talvez por isso, em incoercível coerência orgânica, os versos deste poema retraem a subjectividade lírica para os domínios brumosos da memória mítica, mas nessa peregrinatio ad loca sancta das narrativas arquetípicas do Amor e do Destino dissentem do ludismo culturalista pós-moderno, ao mesmo tempo que não cedem à vertigem estética da reificação textual.
Manda mais a vontade de significação, à contraluz do texto de Gerrit Komrij que o autor escolhera para desassossegante e irónico envoi da colectânea precedente, O Búzio de Istambul. Se aí se afirma que «Um verdadeiro poema não tem significado. / Quanto mais vazio um verso, mais perfeito é. /A poesia é uma fraude sublime, leitor. / Uma burla nobre.», só os últimos versos enunciavam uma característica da poética de João Rasteiro – e esses mesmos o faziam com verdade reversa, velando e valorizando o contrário do que parecem dizer os primeiros versos.
Este livro mostra-se enredadamente fiel à vibração lírica e à vontade simbólica que, no dizer autorizado de Maria Leonor Machado de Sousa, prevalecem na literatura inesiana portuguesa e a distinguem de tratamentos alocêntricos dos tópicos da crónica, da lenda e do mito em causa. Todavia, cumpre esse imperativo de tradição num regime literário que acentua a descontinuidade alógica do discurso, a elisão ou anomalia sintáctica, a pregnante impertinência semântica de rasgos imagísticos ou adjectivais, a busca da ênfase à margem da tradicional linguagem superlativa.
Em contrapartida, após a diversidade prosódica de O Búzio de Istambul, que se permitia a coabitação do poema em prosa com a versificação e, nesta, a variação de metros e estrofes, o presente poema aposta num liminar efeito conotativo de integração reconfiguradora no contexto vertical constituído pela tradição literária inesiana, ao apresentar-se como mo(vi)mento de reaproximação à ordem formal. De facto, propõe-se-nos como sequência regular de organizações estróficas que, sendo quadra e terceto de versos quase isométricos (adoptando como diapasão a cadência do decassílabo, que ora se retrai um pouco, ora se expande outro tanto), sugerem reexploração das virtudes consagradas de formas poéticas fixas – sobretudo, neste caso, o corpo central de sonetos, sobrevivos no ritual amputante… como Pedro e Inês.
Além de induzir na leitura valores de ritualidade hierática, esse apuro técnico-formal não cerceia a indeterminação dos lances imaginíficos e semânticos, antes alarga as hipóteses de leitura, principalmente na atracção pela hipálage e no gesto recorrente de redimensionação do processo poético de transporte, de modo a potenciar nexos bidireccionais de palavras no termo e na abertura dos versos (v.g. «as labaredas puras/madrugadas», «blasfémia vermelha/madrugada», «ouro/prolongado espelho», «das artérias/filiais as bocas», etc.).

2. O título ostentado pelo poema detém, porventura, excessivo papel de catáfora, na medida em que logo nomeia os heróis da evocação poética que surge nesse átrio para se inscrever na cadeia mitográfica. Pode supor-se que, entregues a si mesmas, as madrugadas esculpidas resguardariam melhor a abertura de sentidos no percurso por vir. Mas, afinal, tudo é passível de leitura catalisadora nesse título em que o fulcro da intriga pode mesmo residir na ambivalência da conjunção, isto é, num ou que vincula sob suspeita de disjunção. Não colhe, pois, invocar em vão aquele título para hipotecar as lições do «espaço descoberto» que resulta da «construção» poética.
É evidente que o título, tal como se apresenta, chama de imediato ao nosso horizonte de recepção a multissecular e multiforme reconfiguração do grande desvairo petrino e do mito inesiano. Logo, porém, dá lugar a uma ardilosa digressão lírica, onde se indefinem as valências periódicas de encenação dramática do reenvio para uma narrativa subliminar; e, chamando a si o título As madrugadas esculpido, essa digressão lírica quase se faz coincidir com a delimitação textual do livro.
Por contraste, o título Pedro e Inês ausenta-se formalmente e as próprias figuras dos grandes amorosos, embora permaneçam presumíveis referentes do discurso alusivo de vários textos, só são assim nomeadas uma só vez – até à restituição de primazia ao alto de uma parte II constituída por uma só estância e nesta concentrando a recolecção elíptica dos motivos, dos mitemas e da sua textualização pregressa.
Ambos associáveis a elementos matriciais dos relatos historiográficos, da disseminação lendária e da sua recriação artística em mito – albas de enamoramento, de desejo e comunhão, aurora ominosa e pregnante (de morte como «imensa madrugada na lava do golpe»), transposição em escultura dos túmulos alcobacenses (onde «na noite profunda dormem fundidos/ corpos uníssonos na unidade mítica») … –, os nomes madrugadas e esculpidas actuam como lançamento de duas isotopias fundamentais da subsequente digressão lírica: a isotopia futurante da fecundidade (pelo amor e pela beleza) e a isotopia da consagração memorial (pela arte).
Na «construção» do poema que corresponde à «construção» mitográfica pelo «movimento lapidado das formas», os redundantes valores sémicos de fecundação – «o arco fecundo da morte imutável» – surgem, desde a composição inaugural do poema, aureolados por um postulado de legitimação eufórica (de «amor inicial») e conotados por sugestões de erotização («no útero da madrugada os espasmos»), mas também de sacralização desrespeitada – e, por consequência, de violentação da ordem amorosa do mundo, sobre a qual, numa correcção da factualidade histórica pela tanatografia mítica, impenderá o castigo.
Pari passu pairam as signos exiciais – «os espaços negros da blasfémia vermelha», «da espiral / profanada no gesto obsceno da lâmina». Habilmente, essa isotopia ominosa cruza-se, logo de começo, com a do esculpir para memória: «como se de pedra negra o amor inicial»; e, ao mesmo tempo, este veio pressago, dialecticamente constituído por «a dor feérica das pedras / negras as rosas da madrugada», vê-se cruzado com a metaforização da chama dupla do amor – como diria Octavio Paz deste amor camonianamente “misto”, carnal mas unitivo e ascensional.
De facto, «este era o coração esculpido da chama / compartida no lume reaberto da espiral, «a queimadura esculpida na carne / nua», «fêmea moldada no fogo / escondido». Por isso ele é depois refigurado como «gusa» ou «hulha viva» da consumação dos sentidos na vida e morte «cozida no cio ancestral dos corpos», «combustão brutal / dos corpos no seu movimento inaugural».
Sem retorno neo-romântico ao quadro idílico, mas indiciando também resistência à paisagem modernista da desolação, é para a cena da paixão que remete o poema de João Rasteiro. Paixão como vertigem pulsional do enamoramento e do desejo, paixão como atracção inelutável dos «cativados corpos» (isto é, de corpos seduzidos e sentenciados) aos passos rituais em que se coligam violência e sagrado. Plurívocas se revelam então cromatossemias e imagens como as de «roxa a boca», tão eroticamente propiciatórias quanto associáveis à sorte cruenta do «sangue do pecado / que desafia a luz e o golpe límpido» num dramatismo de amori et dolori sacrum (para recorrermos a esquecido mas marcante título décadent do jovem Barrès), reassumido sob o imperativo moderno do «dom de encolher as lágrimas», ao menos enquanto vigilância e contenção do derrame emotivo e verbal.

3. É filtrada por toda essa teia de alusões e sugestões que, tal como «as águas do Mondego declinam as vozes / ancestrais», nos vai interpelando a declinação aédica do mythos. Alguns versos soberanos hão-de sintetizar em ironia lapidar esse «ciclo temível na floração do destino» impondo-se «sob o assombro lúcido de sentidos ébrios», em congruência com outra isotopia – a da fatalidade, «um espinho cego aberto para sempre», «tenebrosa viagem» que se abate e perdura sobre a paradoxalidade insustível da história ida e da narrativa vinda, «rota do voo /que reúne em si o vazio e a plenitude».
O espaço torna-se lugar de rito e o tempo volve-se ritmo insuspenso, porque ambos se projectam para o domínio arquetípico da construção do sentido pela imaginação simbólica – e «assim se constrói o amanhã da eternidade». Para sempre é «nas fontes da madrugada / intemporal» que sangra e reina e cria «a carência sísmica do desejo / atravessado como se florisse na lâmina».
Mas o seu devir é o rito de segredo e risco, de vislumbre e pávido assombro, próprio da «tragédia» mítica: «o amor emerge de obscuros labirintos», as bárdicas águas do Mondego exercem-se «como cometas fulminantes».

4. Sob a exigência auto-reflexiva e metaliterária da modernidade estética, novo efeito de mise en abyme emerge e atravessa todo o poema, na medida em que «o crepitar acelerado do assombro», que nos espera no coração do amori et dolori sacrum, está indiscernivelmente fincado no «êmbolo puro / que quis decifrar o destino da sílaba».
Eis-nos perante um vínculo placentário muito adequado, aliás, à endógena potência discursiva do mythos – «no esplendor absoluto do silêncio /(…) o nome / Inês que traça o seu próprio curso». Este é horizonte de referência e linha de fuga do poema, enquanto desejo mimético de «inocência que se escreve nos abismos» e de «harmonia na fímbria sedenta dos corpos».
Encanto de «palavras indefesas», de outro modo votado ao malogro, quando «o poema implode (…)/ sob o assombro lúcido de sentidos ébrios», tal como aliás o amor «sob um céu proibido» e a plenitude tão armadilhada como a finitude feliz de Adão e Eva num poema de António Osório que o verso de João Rasteiro faz lembrar ao dizer «o amor profundo imóvel tempo de tudo».
O tom evocativo que ganha a expectação de uma «utopia que acorde as águas do Mondego» corresponde ao ânimo melancólico do canto que se sabe prometido, após Ruy Belo e Eugénio de Andrade, às margens da memória de alegria.

José Carlos Seabra Pereira (*)


(*) Professor Associado da F.L.U.C. - Universidade de Coimbra, desempenhou os cargos de Presidente da Comissão Científica do Grupo de Estudos Românicos, Director do Instituto de Língua e Literatura Portuguesas e Membro da Comissão Coordenadora do Conselho Científico da FLUC. Entre as suas publicações destacam-se: "L’action littéraire et l’œuvre poétique de Joao de Barros", Poitiers, 1984, 794 pp.; "O Essencial sobre António Nobre", Lisboa, INCM, 2001; "António Nobre - Projecto e Destino", Porto, Ed. Caixotim, 2000; "Do Fim-de-século ao Modernismo" (vol. VI de História da Literatura Portuguesa), Lisboa, Publ. Alfa, 2002. Integrou vários júris de prémios literários, nomeadamente o Grande Prémio da Poesia, Grande Prémio do Romance e da Novela e do Conto da Associação Portuguesa de Escritores e Prémio Camões 2009.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

O BÚZIO de ISTAMBUL

O BÚZIO de ISTAMBUL, de João Rasteiro – Crítica de Luís Serrano (*)

A última obra de João Rasteiro aparece-nos sob o signo do Oriente através da cidade de Istambul (ver título) que salta de um verso de José Tolentino de Mendonça (ouvi a estranhos no Bazar de Istambul) e de um outro de Hart Crane (Ó rosa de Istambul – os sonhos tecem a rosa!).
Há ao longo do livro referências bíblicas, mais explícitas ou menos explícitas (Bagdad, Nazaré, Babilónia, torre de Babel, Istambul, mirra, incenso) e também referências a Herberto Helder, ele próprio um poeta marcado pela leitura da Bíblia. É óbvio que a linguagem barroca de João Rasteiro tem a ver com muitas leituras feitas, mas eu destacaria a de Herberto Hélder, cultivando o verso longo e os vocábulos pouco comuns (rares mots) que os simbolistas viriam a cultivarem.
A obra está dividida em três partes: O anjo abstracto, Amieiros que sangram e Tríptico da criação.
Falar da aldeia do Ameal onde nasceu é, para Rasteiro, falar do nascimento e da morte que são, naturalmente, os dois marcos que balizam a vida de qualquer homem.
O Ameal está presente em toda a obra, quer explicitamente, quer através dos microcosmos Sardoal e Rigueira, eles próprios referências topográficas integradas no Ameal.
Diria que é a segunda parte a mais importante, quer ao nível da mensagem que se pretende transmitir (os poetas pretendem sempre transmitir uma mensagem porque querem ser lidos, mesmo quando dizem o contrário), quer a nível dos processos utilizados. São praticamente todos ou quase todos “poemas em prosa”.
É uma extensa reflexão sobre a morte (e sobre a morte do pai, em particular, facto ocorrido quando o autor tinha apenas 31 anos de idade) e sobre o lugar que o viu nascer e onde a infância deixou marcas fundas na memória.
Logo nesta parte (Os amieiros que sangram) o poema da p. 47 inicia-se por um regresso à infância: Aprendi a regressar e todo o poema é escrito no presente do indicativo para nas últimas 3 linhas passar a pretérito imperfeito. São 3 linhas de grande significado: E a terra era viva, translúcida, e tinha um cheiro morno que entontecia. Porque era nela que eu frutificava, pungente.
As referências à morte do pai são comoventes mas sóbrias. Na p. 48 pode ler-se: Estamos em 1996, é Outubro, […] e eu à procura de meu pai […] e na p. 49 é ainda um poema sobre o pai, agora feito memória: O Inverno adquirira um rosto. O dele (do pai): E também ele encontrara um rosto. O seu próprio.
A obsessão da morte encontra-se em muitos poemas. Leia-se na p. 51: Um dia, também eu encontrarei a morte no meio dos amieiros. É curioso verificar que sempre a morte está ligada a um topos que neste caso é a povoação de nome Ameal (Amial com i como se escrevia ao tempo da infância do autor) nas proximidades de Coimbra. Uma síntese destas ligações é bem visível no poema da p. 52: Olho em volta: eu e o meu pai e com todas as memórias que se somam ao meu corpo, e que tu, e contigo todas as memórias, tu aldeia, em que descobri a forma dos fetos, o êxtase do tempo, até conseguir fazer soltar a primeira respiração, a respiração do lugar inicial, a respiração purificada dos animais sob os amieiros.
No poema da p. 53, o autor volta ao tema: […] quando em 1996, sob o vento de Outubro, antes que a noite se aproximasse, te procurava por entre os odores dos amieiros, […] E nem sequer me despedi, pai.
E é entre a morte e os amieiros, símbolo de uma ligação à terra, que a obra se vai construindo; nela não cabe apenas a razão mas também a emoção, a lágrima discreta que o tempo ainda não apagou. Diz o poeta na p. 55: Os amieiros chegam como um nome mágico à boca do rio, sempre um jardim de amieiros contra a paixão da água.
Há, ao longo do livro, imagens muito belas que mostram o bom gosto do poeta, "a qualidade da fábrica". Por exemplo, da p. 57 retiro as últimas 5 linhas: O céu é um pássaro descomunal envolto em chamas sobre as vozes dos mortos, sobre os livros onde se aprisiona a formosura das palavras, como se fosse possível guardar a transparência do júbilo.
E a morte é assim, na visão do poeta, não desactivada mas, de algum modo, contrariada ou superada pela força das palavras. Eis aqui uma razão muito forte para que João Rasteiro continue a escrever os seus poemas que passam a ser nossos também.
A morte circula por aqui, como reiteradamente se disse, entre um Anjo abstracto e um Tríptico da criação onde se integra o poema O território dos anjos. Os anjos são agora de carne e osso e estão contaminados por tudo aquilo que transforma os homens: o amor, o ódio, o crime.
Deixa-se aqui apenas uma sugestão para futura obra: uma redução drástica na frequência de comparações explícitas e de possessivos. Uma obra com a qualidade desta merece uma atenção mais detalhada quanto ao emprego destas bengalas.
A obra vem prefaciada (?) por um poema de Casimiro de Brito intitulado: Quem amou ainda ama.
É uma edição de Palimage, 2008, ostentando a capa uma imagem de Rogério Oliveira.
Aos que se interessam pelo conhecimento dos novos caminhos da poesia portuguesa, recomenda-se a sua leitura.
.
(*) Poeta e ensaísta.

domingo, 15 de junho de 2008

Cântico das Pragas

Paraíso e Inferno - H. Bosch
O cântico das pragas
............À entrada de um túnel está um homem
............com uma bandeira. É para a cobra que
............acena, respondendo a um sinal.
...................
Jaime Rocha

.
É das palavras
que irradia a morte soberana
os lugares sitiados, a blasfémia do silêncio.
Todos morrem nas palavras disponíveis
apenas os corvos tristes
a quem soldaram o bico com prata
suspendem a morte
no branco das túnicas da água visível.
É nesse espaço
onde antes iam os homens sedentos
alimentar a fractura das vísceras
comendo de rastos com as cobras
que a chuva cai geométrica
estilhaçando o alastro das gargantas
que guardam as sílabas com aroma de tílias.
.
O homem está morto dentro do poema
como a linguagem das antigas escrituras
e é o seu corpo que brilha através do branco.
As cobras emergem do chão
abrigam-se nas túnicas álgidas
e aproximam-se do corpo do homem exposto
iluminadas em sua própria loucura.
Engolem os restos da carne corrompida - mas,
inexplicavelmente poupam-lhe os olhos -, depois,
saboreiam o que lhes vai consumir
para sempre a língua, o coração das entranhas.
.
O segredo absoluto e divino do extermínio do verbo.
João Rasteiro
The chant of plagues
.............At the mouth of a tunnel is a man
.............with a banner. He waves at the snake,
.............responding to a sign.
...................
Jaime Rocha
.
It is from flamed words
that sovereign death irradiates
the besieged places blasphemy of silence.
All die in the available words
only the sad crows
whose beak was welded in the silver glit
cunningly hold death
in the whiteness of visible water tunics.
It is in that ancestral space
where thirsty men went before
to feed the fracture of the guts
sipping belly-down with the snakes
that rain pours down geometrical
splintering the ballast of the throat
that keeps syllables with a taste of linden.
.
The man is dead inside the poem
like the language of ancient scriptures
and his body is shining through the whiteness.
Snakes burst out from the ground
meek take sanctuary in the algid tunics
come close to the body of the man exposed
lit by their own madness.
They swallow the remains of the corrupted flesh
inexplicably they do spare his eyes - then
then they taste that which will consume
Their tongues forever, the heart of entrails.
.
The secret absolute and divine of the extermination of the word.
João Rasteiro
Le cantique des fléaux
............À l’entrée d’un tunnel il y a un homme
............avec un drapeau. Il fait signe à la couleuvre
............Répondant, à un signal.
.................
Jaime Rocha
.
C’est par les mots enflammés
que rayonne la mort souveraine
les lieux assiégés, blasphème du silence.
Tout meurt dans les mots disponibles
seuls les corbeaux tristes
auxquels on solda le bec en fulguration d’argent
suspendent la mort avec astuce
dans le blanc des tuniques sous l’eau visible.
C’est dans cet espace ancestral
où autrefois allaient les hommes assoiffés
nourrir la fracture des viscères
suçant au ras du sol comme les couleuvres
que la pluie s’abat géométrique
brisant la portée de la gorge
qui garde les syllabes à l’arôme des tilleuls.
.
L’homme est mort au-dedans du poème
comme le langage des anciennes écritures
et c’est son corps qui brille au travers du blanc.
Les couleuvres sortent de la terre
elles s’abritent dociles dans les tuniques algides
s’approchent du corps de l’homme exposé
illuminées par leur propre folie.
Elles avalent les restes de la chair corrompue
et inexplicablement leur épargnent les yeux
puis elles savourent ce qui va leur consumer
à tout jamais la langue le cœur des entrailles.
.
Le secret absolu et divin de l’extermination du verbe.
João Rasteiro
.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

CrÍticas e comentários ao "BÚZIO de ISTAMBUL"

Criticas e comentários ao BÚZIO de ISTAMBUL:


O BÚZIO de ISTAMBUL é um livro muito bom, não precisa de posfácio de ninguém.

Casimiro de Brito – Poeta e presidente do P.E.N. Clube Português
*
Este seu BÚZIO de ISTAMBUL prossegue a aventura iniciada em livro anterior. Vejo porém, que investe agora longamente no poema em prosa, que lhe permite uma respiração mais ampla, mais afoita ou mais desafogada. Em alguns poemas, entretanto, é ainda o verso regular, escondido, que estrutura ou sustenta o discurso e onde a linguagem encontra ritmos e poemas de expressãop que a cada passo remetem para o universo camoniano, como é o caso da referência aos Rios da Babilónia, ou ao início do poema da pg. 22.
Por este búzio passam os ecos duma infância vivida entre amieiros, montes, o voo dos pássaros, o ventre nu. Assomam memórias e vislumbres, o justo arrepio das vozes/ o transparente da infância. Por isso as palavras, sopradas pelo bafo do poeta, correm para o poema, lá onde o fogo arde com ofício puro.

Albano Martins – Poeta, ensaísta e tradutor português.
*
Meu caro João Rasteiro, é só para lhe dizer o quanto me interessou o seu belo livro - O Búzio de ISTAMBUL. Você aflora áreas do território poético que só raramente se vêem tocadas, o que confere aos seus textos uma força de ânimo, sustentada pela originalidade. Seduziram-me sobretudo as peças em prosa, tão tensas e tão intensas, e tão testemunhantes de um iridescente núcleo emocional.

Mário Cláudio – Ficcionista e poeta português
*
“O búzio de Istambul”, de João Rasteiro é um livro que se deixa escutar. Esta talvez seja a melhor forma para se explicar o que este livro guarda e que o título bem anuncia. Na senda da metáfora mais densa, enunciada por Fiama Hasse Pais Brandão, o escritor conimbricense João Rasteiro lega a sua voz à voz de um lugar, um espaço onde os amieiros são predominantes. Por eles perpassa a memória dos rios, dos gestos, dos afectos. É o lugar onde as palavras se erguem em busca de uma outra dimensão, dimensão essa que o búzio se dispõe a revelar porque é essa a ressonância que guarda.Depois, o diálogo com outros poetas através de um jogo epigráfico deveras interessante, alguns em tom quase epistolográfico. Uma nota: os registos em prosa poética, cuja organização em ciclo permite a construção de histórias onde as palavras são as protagonistas.

Xavier Zarco – Poeta português
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Caro João, seu “Búzio de Istambul” é um excelente livro: gosto muito da simplicidade e simultaneamente da sua densidade. Um livro generoso e humano, com uma dicção quase prosaica e ao mesmo tempo um ritmo surpreendente. A destacar os poemas dedicados a seu pai, ao Jorge de Sena e ao Al Berto, estes dois últimos são os meus preferidos, além do “Encontro com Herberto Helder”. Percebi também perfeitamente as suas leituras e me identifiquei plenamente com muitas delas! Gosto muito do “Poema dos jardins ausentes”: (…) E é como se as rosas nascessem dos dedos/ como uma raiz imitando os frutos meu amor. Muito belo. Obrigado pelo livro. Gostei muito.

Susana Vargas – Poeta, autora de literatura infantil e ensaísta brasileira

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Inês de Castro na literatura portuguesa


Análise crítica do conto "D. Pedro I e Inês de Castro", do livro "Triunfo do amor português", de Mário Cláudio:


Em entrevista ao jornal Diário de Notícias, Mário Cláudio afirma que o que vamos encontrar, neste “Triunfo do Amor Português", é “Uma dimensão da urgência e da permanência do amor”, sendo que o que existe de comum nestas histórias de amor é “A transgressão”. É precisamente este factor de transgressão (e não propriamente um factor de culpa, como alguns poderão pensar), que encontramos no conto “Dom Pedro I e Inês de Castro”. Nesta transgressão Mário Cláudio coloca em causa uma racionalidade, um sentido, assente na modernidade judaico-cristã. É esta, em última instância, que é colocada em causa. O ”sentido” para o autor, é afinal o sentido mais verdadeiro: o sentido da irracionalidade dos pássaros(pág. 55), do amor, da vida (como apenas a outra face da morte), o sentido do corpo (que é apenas a outra face do espírito). E este sentido, que é um “sem sentido”, faz-se som dominante. Até porque o sentido e/ou racionalidade medieval não coloca as visões de vida e morte como antagónicas, tal como não o são as do real e da magia. Desta perspectiva, neste conto não existe uma questão de “ou”, "ou". Quase sempre, é uma questão de “e”. O amor "e" a natureza, "e" a vida, "e" a morte; a razão "e" a des-razão". O próprio sentido dominante é trucidado pelas gargalhadas do rei, através de um excesso cómico, lembrando o excesso barroco, também da pós-modernidade. Não concordo, nem o conto a exprime, com a ideia de que “Não há amor sem culpa”. Transgressão não significa culpa, e é desta transgressão que essencialmente trata este conto. Na imagem de D. Afonso IV, a depor uma cruz sobre o tampo de carvalho, o rei pretende livrar-se precisamente da sua culpa de amor, fosse o amor ao reino, fosse o amor a Inês de Castro(pág. 54), uma vez que a cruz traz, em si mesma, esse sentido de culpa. Este conto assenta numa estrutura do “acordamento”, que passa à viagem metafórica(meta-phoreia-transladar), a viagem em que se acompanha a outra, a literal: a do cadáver, de Coimbra a Alcobaça. As analepses existentes no conto, constituem uma viagem paralela: pela história do amor e pelo questionar/pelo reflectir sobre a sua natureza. As duas viagens, que são uma, terminam na “revelação” do sonho.Refira-se, como afirma Stephen Wilson, no posfácio à segunda edição do “Camões” de Ezra Pound, a importância dada por Pound à viagem, exumação e coroação póstuma(contrariamente a Camões), num “processo de actualização”, que, Pound considerava “como a tarefa principal do artista”. E, é essa “actualização” que a prosa de Mário Cláudio, permanentemente nos oferece. O texto decorre através de uma linguagem neo-formalista, que tenta recuperar um português primitivo, como primitivo é o lugar do amor e do sentido anterior a todos os sentidos. O amor como criação. Encontramos um narrador(D. Fernando), homodiegético(na terminologia de Genette) e não omnisciente. É neste narrador, que vai assentar toda a estrutura do conto, seja ao nível do “estranhamento” ou do “acordamento”. É através do narrador que se vai formando a ideia de uma Inês, uma personagem à volta de quem giram várias e complexas relações. Repare-se na relação entre Inês e Dona Constança. Será amizade, amor, ciúme ou outra relação ainda mais intrigante?(até porque a dificuldade do amor assenta precisamente na sua não compreensão, na sua não - humanidade – ele é para além de nós). Daí se poder questionar(pág. 46) de quem teria Dona Constança ciúmes. Seria de Pedro, ou de Inês? O autor e/ou narrador deixa-nos numa encruzilhada, simbolizada no jogo de xadrez a que Dona Constança se entrega. O xadrez, como possível metáfora do poder( político, económico ou moral), mas sobretudo do poder do amor. Na página 49, existe mesmo uma alusão, uma suspeita de quase "incesto", na relação entre D. Afonso e Inês de Castro. O próprio narrador(D. Fernando) refere(pág. 47): “plantou-se meu pai como se guardasse a que fora sua, e creio que sua apenas”. Porquê esta re-afirmação do narrador? Será que foi mesmo de mais alguém? De D. Afonso IV, Dona Constança, de um outro desconhecido? Aliás, importa referir que se o carácter de D. Pedro nos é apresentado como o de um homem desequilibrado, sob uma forma animalesca, Inês, como refere o narrador, não é nenhuma santa(pág. 47): ela é homenageada, não por ser santa, mas por ser desgraçada como todos eles. É uma anti-heroína. Perpassa, como fundamental neste conto, a celebração da vida através da celebração da morte(daí a reposição da “dança da morte”, uma “dança macabra”(na pág. 48), onde se mostrava e evidenciava , “o primado da vida”). Aqui, o amor está ligado à morte e à vida, à celebração da própria natureza(e não à celebração das normas éticas e morais de uma sociedade). Repare-se nas mágoas de D. Pedro, “curadas” pela madrugada, nos casebres das moças que dormiam. Na presença da morte, a sexualidade, a vida. A morte surge como festa, celebrando a vida: como na natureza do próprio amor. Atente-se no pormenor que é a sobreposição do orgasmo de D. Pedro ao último suspiro de Dona Constança. Não existe neste conto - nem na natureza do amor - separação entre vida e morte. Pode-se dizer, tendo em conta o que diz o narrador(pág. 52): “como se a paixão maldita que não se extingue permanecesse”, uma vez que a impossibilidade de deixar de amar é igual à impossibilidade do triunfo da morte absoluta”. Daí que D. Pedro vá vivendo o seu amor - entregando-se à morte - da própria amada e dela fazendo rainha. Regresso por fim ao narrador, D. Fernando, que é na verdade a personagem essencial deste conto. Nele vamos encontrar uma permanente des-identidade. Como é sugerido(pág. 56), ele é simultaneamente Inês, mulher, homem, alguém que está preso num espartilho(que diariamente lhe colocavam, com as suas vestes), que é o espartilho da sociedade. O espartilho do poder, político, ético, cultural e social com que não se identifica. D. Fernando não consegue livrar-se da imagem da mãe; logo, não poderá amar a mulher, Dona Leonor, que, tal como todas as mulheres, lhe lembra a mãe. Precisa urgentemente que o rei morra, condição para não continuar a submeter-se ao seu poder falocêntrico, ao poder do homem que odeia e simultaneamente ama com desespero. Atrevo-me a afirmar(como diria Freud), verificar-se em D. Fernando uma questão edipiana por resolver. Razão para se falar de homossexualidade? Talvez, embora hoje, muito discutível, pois todos os símbolos da sua "identidade", - de uma identidade que lhe é imposta do exterior, e que o castra -, são a principal razão que o impede de amar, de possuir o “amor verdadeiro”. O seu amor, como todo o verdadeiro, é o amor dos condenados (de certa forma, embora noutra perspectiva, o mesmo acontece entre D. Pedro e Inês, pelo menos ao nível da leitura literária-histórica), dos que estão fora do sentido dominante, dos fora da lei e da ordem, social e moral. Por isso, o “bobo”,(personagem fortíssima da literatura, nomeadamente no teatro shakesperiano), o "bobo Fernando", onde se afronta a ordem instituída, mas em cuja "desordem" estamos mais próximos da verdade – e, neste caso, da verdade do amor. É, tal como refere Charles Bernstein, num ensaio que me foi dado a ler numa aula de Poética e Escrita Criativa, é a comédia e/ou cómico(não a ironia "educada"): a "estilhaçar" a ordem do real. Todo o final do texto é pathos(excesso) e grotesco, erro e criação, morte e vida e morte. Uma visão do amor, como sinónimo da visão do inferno, mas, como referi, sem existência da culpa - um inferno sem culpa. Talvez o que nos fica seja o temor perante a transgressão, mas desligada da culpa. Por isso, atrevo-me a considerar este conto uma celebração do amor, desse amor puro e transgressor. Porque o amor é sempre uma afronta a todo o sentido instituído. É a liberdade absoluta perante qualquer ordem e/ou poder instalado, seja ele social, político, moral, cultural ou religioso. Uma liberdade perante todas as formas de linguagem e seu poder. Concluindo, estamos perante um texto extraordinário, onde o cenário de Coimbra se apresenta como o ideal para a história e para a pureza do amor. Amor, que, através da palavra de Mário Cláudio, procura a liberdade absoluta do ser humano, para um sentido outro, na vida e na morte.
Texto apresentado no Anf. IV da Faculdade de Letras/Universidade de Coimbra, Dezembro de 2005 (Comemorações dos 650 Anos da Morte de Inês de Castro).
João Rasteiro