domingo, 6 de fevereiro de 2011

DIACRÍTICO



PREFÁCIO 

REDUZIR AO HUMANO O DIVINO
  
     Já o sabíamos: a poesia é, por definição, um acto criativo, e isso mesmo nos assegura o substantivo grego poiesis, que ao verbo poiein – "fazer", "criar" – foi buscar a raiz e a substância. É de criação que fala – que trata – o poema Diacrítico, de João Rasteiro. A diversos níveis, aliás. Como quando, por exemplo, ex contrario do que ensinam as gramáticas, o discurso começa com um ponto final, isto é, antes e não depois de encerrado o período. Como se, por desnecessário ou inútil, algo tivesse sido elidido, rasurado na página. Ou como se algo estivesse subentendido e o seu entendimento fosse confiado à sensibilidade e inteligência do leitor. Como suplemento ou, antes, como suprimento. Criação, também, pelas metamorfoses operadas no tecido verbal que subjaz à construção do poema. Criação, ainda, pelo uso alargado da metáfora e, sobretudo, da elipse, figura através da qual se engendram os desvios e as operações semânticas que conferem ao texto o seu estatuto de obra literária.

            O poema, cujo título remete para uma ordem de natureza gramatical ou simplesmente linguística (os diacríticos, ensinam os dicionários, são sinais distintivos do timbre de certas vogais), divide-se em duas partes, cada uma delas subdividida em igual número de capítulos que funcionam como estrofes e valem como segmentos dum macrotexto cujo sentido se vai, dir-se-á, organizando e esclarecendo por si mesmo. Empurrada por um vento que sopra do deserto, a linguagem carrega consigo algumas pétalas que vai deixando na página em branco. Portadoras dum sentido originário, genesíaco, as palavras abrem sulcos num terreno onde o significado se oferece pleno de potencialidades e sugestões, carimbando de decantada expressão o corpo do poema. Tudo, aqui, é alusão. Tudo é profecia, oráculo, metamorfose. Tudo é, também, delírio. A linguagem é, como se lê no capítulo XVII da segunda secção, a "das vísceras condenadas à ilusão do verbo". Daí, talvez, o "surreal canto" para o qual somos convocados no segmento XIII da segunda secção, "A ressurreição das crias", ou aquele "deslumbrante espaço irracional" a que nos transporta o capítulo XVI da mesma secção. Espaço onde o deus sob vários modos e disfarces convocado para a cena se escreve com minúscula – outra forma de ao humano reduzir o divino, que é, parece-me, o escopo de toda a arte.

                                        Vila Nova de Gaia, 21 de Agosto de 2010

                                                            Albano Martins
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VI
.e por amor liberalizou-se o crime e o sacrifício das fêmeas em seu útero. seguiram-se dias de bárbaras festas onde os machos dançaram o êxtase das bocas. os loucos saboreiam as primaveras eivados de lua cheia. desnudos estiraram tições em fogo sobre as fêmeas para consolarem as exigências da carne. após as orgias aguardaram mais crias junto ao coração onde ocultamente a divina criação se digladia. e a seguir surgiram todos os outros seres inimigos dos filhos de deus. todos eles fecundados à sua imagem no altar do caos. a terra tinha então sido assestada pelos frutos cognitivos. os escolhidos foram amparados pelo arcanjo de marfim fluindo como rosas de feroz plenitude. que se reproduzam na noite da sua castidade e transitem nomes de inevitável perplexidade. que apazigúem os sonhos da argila. debaixo do núcleo venerável das oliveiras uma serpente glauca adormeceu de cansaço.


 VIII
.a arte mais sublime de trespassar a morte é descansar num nevoeiro a arder de sangue. e mastigar a ferocidade das abismadas paisagens com a zoologia aberta do amor. na agonia da pura inocência. olhar o gume da lâmina prateada e amá-la exalando a sua boca atulhada em espaço lírico. no ventre suculento das algas. a renúncia do torpor é apenas a entrega incólume da candura e da vulva viva porque nos incutimos erectos. o fingimento que evoca a mulher sufocada nos ganchos quando o poeta faz de homem sábio. a magnólia cheirando a incesto nas palavras faustosas. cada golpe luminoso é a acutilante  pujança das orquídeas negras do nosso próprio eco. a exígua morte.

XIV
.tal como os fungos dos poços de Jerusalém a memória sagrada das tábuas  é uma crisálida indecisa. aquela que se perdeu para sempre no fundo inóspito do próprio ventre de bunho. e parte larva parte meretriz chegaram os novos seres para talhar as cidades em metálicos e encorpados pulmões de cobre. alguns homens que já só se arrastam conforme as ofídias que percorrem as cisternas em noites de lua cheia. o violento delírio de se verem reflectidos nos olhos da água. sob o nenúfar as suas escamas repousarão desinquietas pela última miragem. a outra face do pai que tecia argênteas teias de melancolia. é preciso recordar as prefigurações das trevas para se acolherem as metamorfoses. a benévola carícia. a ressurreição hodierna das crias. o eco colorido.


XVII
.as crias já não sobrevivem sob a voragem do sol. bendita a luz dos astros que fulmina a paixão curvilínea das camélias brancas. nas cidades só o mármore e as negras aves. e na linha sísmica da cidadela a linguagem do delíquio dispersa o olfacto de néon entre presa e predador. a incisiva mecânica dos seres sem voz. criador e criatura. homem e deus. o infindo eco do desvario. o eterno diacrítico da ilusão. a deflagração do corpo. pojo


                                            João Rasteiro

                                                             2010

1 comentário:

Karinna Alves Gulias disse...

Oi João, tudo bem?
Eu quero um Diacrítico. Quanto é?
Abraços,
Karinna